Arquivos psicanálise - Blog do Saber https://blogdosaber.com.br/tag/psicanalise/ Cultura e Conhecimento Mon, 04 Mar 2024 21:46:43 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.4.3 Crítica do saber prático: psicanálise é filosofia https://blogdosaber.com.br/2024/03/05/critica-do-saber-pratico-psicanalise-e-filosofia/ https://blogdosaber.com.br/2024/03/05/critica-do-saber-pratico-psicanalise-e-filosofia/#respond Tue, 05 Mar 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4306 Ler mais]]> Método socrático

Sócrates foi um dos pais da Filosofia ocidental. Conhecido por ser o homem que fazia muitas perguntas, Sócrates afirmava nada saber, procurando incessantemente pela verdade. Ele não dava conselhos, mas punha à prova os valores de seus alunos. As certezas eram, então, questionadas, revelando as falhas de suas lógicas. Qualquer semelhança com a psicanálise não é mera coincidência!

Bom, as longas discussões levavam ambas as partes do diálogo a alcançarem uma melhor compreensão sobre os assuntos, que, em geral, envolviam moralidade e sociedade. 

Platão e Xenofonte se sentiram tão inspirados com a visão de Sócrates, que acabaram criando diálogos fictícios para reproduzir esse processo de discussão desenvolvido por ele. O que, mais tarde, viria a ser conhecido como Método Socrático. Para saber mais, acesse This tool will help improve your critical thinking – Erick Wilberding

Críticas da razão

Mais tarde, Immanuel Kant começa a se questionar sobre limites: até onde é possível o conhecimento humano? Em ‘Crítica da Razão Pura’, Kant restringe o saber ao plano do sensível, ou seja, daquilo que é perceptível, que é palpável. E coloca, assim, a impossibilidade da metafísica enquanto ciência. Em outras palavras: não há como provar coisas que vão além da física.

Apesar da impossibilidade de comprovação, Kant passa a se questionar novamente sobre os limites do saber. Seria o sensível, de fato, o único plano da verdade? Assim, em ‘Crítica da Razão Prática’, ao desenvolver sua teoria sobre a ética, ele resgata objetos metafísicos, como a liberdade, formulando, então, as suas concepções.  

Ainda mais tarde, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em seu ‘Fenomenologia do Espírito’, questiona o peso da ciência, que Kant tanto defendeu em ‘Crítica da Razão Pura’, em face da verdade da natureza, da experiência:

… o que significa para a consciência experimentar-se a si mesma através de sucessivas formas de saber que são assumidas e julgadas por essa forma suprema que chamamos ciência ou filosofia?
O pensamento hegeliano

E Hegel vai além do domínio da ‘Crítica da Razão Prática’, ao propor a “faculdade de julgar” ou a “verdade da certeza de si mesmo”. É quando se introduz a dialética articulada “entre a certeza do sujeito e a verdade do objeto”. 

… um sujeito que é fenômeno para si mesmo ou portador de uma ciência que aparece a si mesma no próprio ato em que faz face ao aparecimento de um objeto no horizonte do seu saber.

Em outras palavras, Hegel diz que os saberes em relação às coisas da vida são construídos a partir da experiência do sujeito, que, por sua vez, encontra-se no mundo físico. Então, apesar da experiência se encontrar na história da mecânica newtoniana, juntamente à ciência, o saber que se produz dela depende da interpretação ou da ligação do sujeito com o mundo, que, então, enquadra-se no movimento da dialética, dentro do campo da metafísica. 

E as origens da psicanálise

Bem mais tarde, no campo da psicanálise, Jacques Lacan se debruça sobre o estudo do discurso, que ele chama de cadeia de significantes, bem como da irrupção do equívoco na língua. Em seu seminário 22 ‘R.S.I.’, ele teoriza sobre o funcionamento da cadeia significante, que seria composta por três registros: o real, o simbólico e o imaginário (RSI), sendo o equívoco uma forma como o real se manifesta.

No entanto, pouco depois, Michel Pêcheux, filósofo e linguista francês, considerado um dos fundadores da análise do discurso, defende que “o objeto da Linguística não existe sem o fato estrutural do equívoco”. Leia mais em “…la onde o amor é tecido de desejo…”: lalangue e a irrupção do equivoco na língua.

Bom, e assim segue a psicanálise, nascida na filosofia, uma ciência que não é ciência porque só gera teorias, e prolongada no campo da linguística, esta sim! Assim é a psicanálise: da ordem de uma metapsicologia, algo que a própria psicologia não consegue explicar. Mas o fato de não se apalpar não implica na inverdade de inexistir, certo? Afinal, todo sofrimento esconde uma verdade baseada na existência, que so poderá ser revelada através do questionamento. Para saber mais sobre, leia também Afinal, o que é essa tal de Psicanálise?.

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Coca: a Psicanálise na América Latina https://blogdosaber.com.br/2024/02/20/coca-a-psicanalise-na-america-latina/ https://blogdosaber.com.br/2024/02/20/coca-a-psicanalise-na-america-latina/#respond Tue, 20 Feb 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4107 Ler mais]]> Tudo começa com a coca…

A América Latina é um importante centro de psicanálise e isso se deve à coca. Isso mesmo. Para quem não sabe, a coca foi instrumento de investigação de Sigmund Freud, iniciada em 1880, bem antes de se tornar ilegal. Freud observou que “a digestão e o humor melhoravam após beber água misturada com cocaína dissolvida”, segundo o artigo da BBC O desconhecido fascínio de Freud pela América Latina.

A história da coca

De acordo com o artigo acadêmico O uso da folha de coca em comunidades tradicionais: perspectivas em saúde, sociedade e cultura, publicado no periódico Historia, Ciência, Saúde – Manguinhos, “O uso da folha de coca na América do Sul remonta a um passado de mais de oito mil anos”.

Henman (1981) informa que as primeiras folhas de coca e recipientes de cal identificáveis foram descobertas no sítio de Huaca Prieta, na costa norte peruana, nas camadas correspondentes ao quarto período pré-cerâmico, datado entre os anos 2500 e 1800 antes de nossa era. Discorre ainda que parece difícil evitar a verdade trivial de que a folha de coca se expandiu até a Colômbia a partir das sociedades mais avançadas do Peru e do Equador.

Além de suprimir a fadiga de quem subia as cordilheiras, a sede e a fome, anestesiava a dor dos feridos e operados. As folhas de coca eram tão bem quistas que eram usadas em oferendas “a fim de honrar ídolos, huacas, divindades, montanhas, fontes e apachetas”. E, a princípio, apenas os reis e nobres podiam consumi-las. O mito do surgimento dessa folha sagrada conta a história de uma jovem e bela índia. Vaidosa e egoísta, Coca “seduzia os homens, enganando-os com seus atrativos físicos, rejeitando-os depois.”

As queixas pelos enganos de Coca chegaram ao imperador inca, que escutou com tristeza a decisão dos sacerdotes de sacrificá-la. Coca, então, foi morta em uma cerimônia solene, e os pedaços de seu corpo foram enterrados nos quatro cantos do Império. Não demorou muito e observaram que, em cada um desses lugares, crescia um arbusto com formosas folhas verdes, chamado, posteriormente, de Mama Coca, em recordação da mulher sacrificada.
A difusão e a reviravolta da coca

Cristóvão Colombo foi, então, o primeiro a dar notícias sobre a folha de coca à Europa. 

Ferreira e Martini (2001) comentam que outro importante escrito foi o de Américo Vespúcio, em 1499, com publicação em 1507, que já descrevia a coca sendo mastigada com cinzas. Esclarecem que o uso concomitante, no ato da mastigação, de cinza ou bicarbonato de sódio, utilizado até hoje, deve-se ao fato de sua absorção pela mucosa da cavidade oral só se realizar em pH alcalino. Calculam que a sua ação farmacológica, quando mascada, é semelhante ao estímulo provocado pela ingestão de doses elevadas de cafeína, não sendo, no entanto, acompanhada de euforia.

No período colonial, a coca teria sido inicialmente proibida pela igreja católica, que alegava ser um obstáculo para difundir o cristianismo. Depois, o rei Felipe II teria declarado “o ato de mascar a coca hábito essencial à saúde do índio”, já que os espanhóis haviam constatado que “os índios não conseguiam fazer o trabalho pesado sem o uso de coca”.

As autoridades religiosas espanholas chegaram a coletar dízimos do comércio de coca, e como os nativos não valorizaram o ouro e a prata, os espanhóis pagavam os serviços prestados com folhas de coca e outros produtos. É nessa perspectiva que avançamos na história para compreender melhor os processos pelos quais a folha de coca se transformou de produto demoníaco em alvo de medidas que criminalizam e estigmatizam o seu uso.
A coca passou, mas a psicanálise na América Latina não passará

Após publicar o artigo Über Coca, quando surgiam estudos sobre dependência e mortes por overdoses, Freud “deixou de defender os benefícios estimulantes e analgésicos da coca”. Para ler mais sobre os efeitos colaterais de opióides, leia também Acontece nos filmes, acontece na vida: toxicomania. Mesmo assim, ele seguiu estreitando “laços com importantes médicos, psiquiatras e intelectuais do continente”.

Freud teria descrito o psiquiatra peruano Honorio Delgado Espinoza como o seu “primeiro amigo estrangeiro”. Os dois “trocaram cartas, artigos de jornais e presentes durante anos.” 

Em 1915, Delgado publicou o seu primeiro artigo sobre psicanálise no Peru, intitulado El Psicoanálisis. Em sua formação acadêmica, identificava-se com Aristóteles, Cervantes, Shakespeare, Goethe e Jaspers, por exemplo, que já lhe faziam uma marca humanista. Além de Freud, Delgado mantinha correspondência com outros seguidores dele, como Alfred Adler e Karl Abraham. As conexões ideológicas entre Freud e Nietzsche deixavam Delgado ainda mais interessado pela psicanálise. 

Em 1919, o psiquiatra peruano publica a sua tese, defendida em 1917, em formato de livro, “o primeiro volume escrito em castelhano sobre psicanálise ”.

“Este livro foi bem recebido pela comunidade psiquiátrica internacional e colocou Delgado na cena mundial. No Journal Medicine of Bordeaux e The Psychoanalytic Review, publicaram-se honrosas menções ao seu livro.”

Na Revista de Psiquiatría y Disciplinas Conexas, junto com Hermilio Valdizán, “o dueto acadêmico mais importante da psiquiatria no Peru”, publicou diversos artigos referentes à psicanálise e se tornou “o espaço de divulgação do freudismo” no país. Delgado se tornou o primeiro psicanalista do Peru. 

E, assim como a coca saiu do Peru e se espalhou por outros países, a psicanálise saiu de boca em boca entre médicos e intelectuais das Américas. Hoje, a Argentina é a maior referência da América Latina em psicanálise, sendo Buenos Aires uma das cidades com o maior número de psicanalistas no mundo.

A tradicional reinvenção

Essa história eu vos trouxe para mostrar que é graças à coca que hoje o Brasil usufrui de uma psicanálise mais avançada. Talvez, mais tradicional, justamente, por ser mais livre. Confuso, não? Bom, para quem lê lacanês, nada mais habitual. Afinal, a psicanálise é complexa e o é porque nós somos seres complexos. 

Anunciou Jacques Lacan em discurso de encerramento das jornadas da EFP, em 09 de outubro de 1978, “não se pode transmitir a psicanálise; é preciso reinventá-la” (Pablo Peusner em prefácio à edição argentina do livro Da fantasia de infância ao infantil na fantasia de Ana Laura Prates). 

Assim como a coca foi reinventada – passando de símbolo de adoração à narcotráfico ou de analgésico à dependente químico -, a psicanálise deve ser reinventada a cada troca de era ou necessidade cultural. Afinal, ela deve acompanhar a complexidade humana, que faz descobertas, que muda de opinião e que experimenta novas formas de sofrimento. 

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A leitura enquanto pilar da possibilidade https://blogdosaber.com.br/2024/01/09/a-leitura-enquanto-pilar-da-possibilidade/ https://blogdosaber.com.br/2024/01/09/a-leitura-enquanto-pilar-da-possibilidade/#respond Tue, 09 Jan 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=3722 Ler mais]]> Dia do leitor

O último domingo (7) foi o dia do leitor. Bom, se formos checar o calendário, constataremos que todo dia é dia de alguma coisa, certo? As datas comemorativas estão para nós normalmente mais a título comercial do que propriamente ideológico, seja para capitalizarmos ou fazermos merchan. Embora os motivos sejam práticos, pode ser importante elegermos essas datas como tentativa de valorizar e popularizar o que está sendo celebrado. 

O leitor deve ser valorizado porque a leitura é essencial para a nossa formação enquanto cidadãos e indivíduos. Para que possamos entender quais são os nossos direitos, deveres e, inclusive, desejos. Os desejos podem estar atrelados à lei, mas não necessariamente. Sem leitura, não é possível fazer interpretações, gerar questões, tirar dúvidas e, por fim, compreender. Sem leitura, não há como saber quais desejos estão atrelados à lei e quais são independentes dela. Ficamos, assim, eternamente reféns de um outro, que talvez seja bom o suficiente para nós, mas talvez não. 

Que falta que ler faz…

O analfabetismo estrutural está presente em grande parte da população brasileira, mas é sutil, pois é mascarado pela conveniência econômica e social. Consiste na repetição de palavras e frases de efeito sem uma fundamentação teórica ou uma concatenação de ideias. Trata-se de pura repetição, sem compreensão de fato do que está sendo dito. 

Lembre-se que a repetição é uma estratégia de marketing: se uma afirmação é repetida muitas vezes, ela se torna automaticamente uma verdade. Mesmo que não seja. Afinal, quem teria a audácia de questionar algo que provém de tantas partes? “Há de ser verdade!”

A verdade do encontro

O negócio é que construímos as nossas vidas baseadas nessas verdades. E como faz quando a fundação de uma construção não é segura? E como faz se ela finalmente desaba? Damos “graças a deus” ou caímos em desespero?

A leitura diversificada propõe possibilidades, assim como a Psicanálise. Afinal, existem várias formas de construir: taipa, madeira, alvenaria, concreto, aço etc. E toda forma de construção tem seus prós e contras. Ou seja, todas são possíveis, mas alguma delas deve requerer uma manutenção mais enxuta. É isso que a leitura e a Psicanálise têm em comum: elas proporcionam a possibilidade do encontro. 

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A unidade fragmentada: de Freud a Butler https://blogdosaber.com.br/2023/10/24/a-unidade-fragmentada-de-freud-a-butler/ https://blogdosaber.com.br/2023/10/24/a-unidade-fragmentada-de-freud-a-butler/#respond Tue, 24 Oct 2023 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=2965 Ler mais]]> A unidade de Freud e Jobim

Quem flerta ou namora com a psicanálise muito provavelmente já ouviu falar de uma das obras mais conhecidas de Freud, Psicologia das Massas e a Análise do Eu. Dentre tantas questões, o pai da psicanálise aborda a teoria do instinto gregário: que, a partir da observação da multiplicação celular, defende que as pessoas seguiriam uma tendência de formar grupos, seriam compelidas umas às outras.  

Afinal, quem nunca ouviu Tom Jobim com o seu “é impossível ser feliz sozinho”? Encontrar um par, um grupo. Pessoas com quem você se identifica, que possam lhe ouvir sem (tanto) julgamento, que confirmem o seu pensamento, que concordem com o que você diz, que lhe acolham, que lhe reconheçam. Pessoas para chamar de suas: sua esposa, sua amiga, seu colega, seu parceiro. Como é bom ser aceito, como é bom poder contar com alguém. Para ler mais sobre reconhecimento, acesse Por que fazem corpo mole? Entendendo a dialética do reconhecimento.

A unidade de Calligaris e Arendt

O grupo, portanto, é uma unidade. A família é uma unidade. E assim por diante. A unidade indica que os agentes do discurso falam apoiados nas mesmas pressuposições. Por isso o discurso pode parecer sempre o mesmo. Podemos perceber essa tendência de maneira ainda mais evidente nos grupos religiosos e políticos. Mas as falas tendenciosas nos impregnam por todos os grupos dos quais participemos. Em sua obra O grupo e o mal: estudo sobre a perversão social, Contardo Calligaris, baseado em Freud e Hannah Arendt, chega à conclusão de que o indivíduo abdica de sua personalidade em nome de um “fascínio por servir ao outro”.

Prova disso é o cúmplice. Aquele que testemunha um crime de alguém que ama ou admira tende a relevar os fatos. Por isso tantos pais e amantes encobrem crimes de seus filhos e companheiros respectivamente. Por isso tantas pessoas se surpreendem ao descobrir certos comportamentos, antes desconhecidos, de seus entes queridos. “Ele jamais faria isso”. Talvez, não sozinho. 

A perversão é formalmente combatida pela sociedade, mas exercida por debaixo dos panos, sem que sequer percebamos. Não percebemos que tentamos de tudo para sermos aceitos. Para que não nos sintamos sozinhos, excluídos, não fazendo parte. Afinal, os discursos têm que convergir, não é mesmo?

Tecnologia e individualismo

Bom, apesar das teorias bem fundamentadas de Freud, Jobim, Arendt e Calligaris, não dá para negar que, talvez, já estejamos em um outro lugar em termos culturais. À medida que a tecnologia avança e temos mais fácil acesso à informação, outras soluções bem como outros problemas acabam surgindo. Namoro virtual, home office, cursos EAD e jogos online são soluções que produzem o individualismo. O individualismo, por sua vez, pode ter diversos efeitos, positivos e negativos. 

Homem sozinho e pensativo olhando para o mar

Se pensarmos a partir do referencial evolucionista, poderíamos associar o individualismo a uma contracorrente à manutenção da espécie, ao coletivo. Ou, pelo menos, avesso ao formato de sociedade que temos hoje. Já, do ponto de vista da psique, poderia ser uma revolução. Poderia, inclusive, representar liberdade, autonomia. 

Butler, sobre a fragmentação da unidade

Judith Butler questiona em seu Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade se a unidade “é necessária para a ação política efetiva”. Nesse caso, ela se refere ao movimento feminista. Acredita que o feminino e, portanto, o feminismo tem várias faces e, por consequência, diferentes frentes. Ou seja, há diversas maneiras de ser mulher. Butler nos convida a refletir se o feminismo enquanto unidade, como uma única voz, não acabaria atrapalhando as aquisições políticas das mulheres, já que as suas possibilidades deveriam ser infinitas.

Citação de Judith Butler em Problemas de Gênero, pág. 40:

“Não será, precisamente, a insistência prematura no objetivo de unidade a causa da fragmentação cada vez maior e mais acirrada nas fileiras? Certas formas aceitas de fragmentação podem facilitar a ação, e isso exatamente porque a ‘unidade’ da categoria das mulheres não é nem pressuposta nem desejada.
(…) tratar-se-á de uma assembleia que permita múltiplas convergências e divergências, sem obediência a um telos normativo e definidor.”
A sociedade fragmentada

Agora, pensemos em todos os transtornos que temos visto crescer no mundo: depressão, ansiedade, bipolaridade, TDAH. O que as pessoas com esses transtornos têm em comum? Elas tentam suportar a realidade que se apresenta. Uma realidade que já não cabe mais dentro da atual conjuntura cultural. Assim, a sociedade vai se fragmentando em depressivos, ansiosos, bipolares, desatenciosos. Pessoas que querem fazer diferente, mas com certa dificuldade de abandonar o que é mais aceitável, a normalidade. E cresce o número de autistas! Pessoas que fazem diferente e que nem têm ideia do que é normal? Afinal, o normal ainda é pressuposto e desejado como já foi um dia?

O que quero dizer com tudo isso? 

Se a formação de bandos tende a promover uma ‘dessubjetivação’ das pessoas ou ‘anulação’ do pensamento crítico e se pensarmos a evolução da espécie também a partir de uma transformação psíquica, podemos esperar uma tendência à fragmentação, ao individualismo, não? Seriam os formatos de unidade familiar que mais crescem no mundo – solteiro ou casado, com ou sem animal de estimação, sem filhos – um sinal disso?

Afinal, se há diversas formas de ser mulher, também existem diferentes maneiras de ser humano, certo? Talvez, tudo seja só uma questão de tempo.

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Sexo, gênero e psicanálise https://blogdosaber.com.br/2023/10/17/sexo-genero-e-psicanalise/ https://blogdosaber.com.br/2023/10/17/sexo-genero-e-psicanalise/#respond Tue, 17 Oct 2023 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=2828 Ler mais]]> Cirurgia trans

Em Sex Education, série britânica da Netflix, o tema “transgênero” é abordado com bastante naturalidade, em especial, na sua quarta e última temporada. Mas essa é uma questão com muitas polêmicas que envolvem discussões, inclusive, sobre a disponibilidade cirúrgica nas redes públicas de saúde em todo o mundo.

As primeiras cirurgias de “mudança de sexo” datam dos anos 1930. Na Inglaterra, a clínica Tavistok, do sistema público e alvo recente de polêmicas, anunciou o encerramento de suas atividades, depois de 30 anos tratando de crianças e adolescentes que não se identificam com o seu sexo biológico, através de acompanhamento psiquiátrico e psicológico, manipulação hormonal e intervenção cirúrgica. Para saber mais, acesse Inglaterra. Crianças transgênero: por que a clinica Tavistok vai fechar.

No Brasil, a primeira operação de redesignação sexual pelo SUS foi realizada em agosto deste ano numa mulher trans, bailarina e professora de dança de 47 anos. Yohanna de Santana vinha sendo acompanhada desde 2018. Dentre os critérios adotados para a realização dos procedimentos cirúrgicos pelo Ministério da Saúde, estão: idade mínima de 21 anos e, pelo menos, dois anos de acompanhamento psicológico. Para saber mais, acesse Bahia faz primeira cirurgia de redesignação sexual pelo SUS.

Eu sou o monstro que vos fala
Pintura de um Frankenstein ativista em muro

Paul B. Preciado é um homem trans, filósofo, escritor e um dos principais pensadores contemporâneos das novas políticas do corpo, de gênero e de sexualidade. Ele é o autor do livro “Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas”. No final de 2019, Paul foi convidado a participar da Jornada Internacional da Escola da Causa Freudiana em Paris. O tema era “Mulheres na psicanálise” e ele acabou discursando para 3500 psicanalistas. 

O discurso de Paul trazia certo ressentimento quanto à abordagem psicanalítica supostamente arraigada à epistemologia da diferença sexual e, portanto, ao regime patriarco-colonial. Bom, tendo em vista os seus 17 anos de análise pessoal, assim como as diferentes visões da psicanálise nos mais diversos países, com seus posicionamentos quanto à análise leiga, por exemplo, poderíamos considerar, de fato, esse “suposto saber”. 

Considerando ainda Freud e Lacan ao pé da letra, com os seus respectivos “Complexo de Édipo” e “confusão do órgão com o significante”, também é plausível a reclamação de Paul. No entanto, é importante termos em mente que nem o nascimento da psicanálise nem a sua proposta nunca foi e nunca será calcada no “pé da letra”, no palpável. A psicanálise sequer pensava em brotar quando Hegel, Descartes, Kant já preparavam o terreno.

Mas, afinal, o que é Psicanálise?

A psicanálise é filosofia, subjetividade, não determinação. Por trás do Complexo de Édipo, há um matema com variáveis desconhecidas, que podem mudar à medida que o tempo passa. Por que não? Se Freud deixou isso claro? Mas, afinal, o que fica claro na psicanálise? Além disso, não podemos esquecer que Freud, Lacan, Preciado são apenas homens. Homens com opiniões, homens de tempos diferentes, que ora fazem sentido ora não. 

No frigir dos ovos, a psicanálise trata de procurar formas de sobreviver, sendo todas elas possíveis, contanto que o sujeito dê conta. Não é disso, afinal, que se trata? Desde quando a psicanálise precisa de uma epistemologia, se o que conduz a análise é o desejo do sujeito?

E o discurso diz respeito a quem?

É possível ver no discurso de Paul Preciado um discurso, que não se encaixa apenas na comunidade trans, mas que cabe a todos nós, que tentamos sobreviver numa sociedade, numa civilização. Todos nós nos debatemos todos dias a fim de encontrar saídas, para que nos sintamos um pouco menos desconfortáveis diante de expectativas, pessoas e normas julgadoras. 

Citação de Preciado extraída de “Eu sou o monstro que vos fala” (pág. 89-90):

Digo isso a partir da minha posição de homem trans, de corpo não binário que se transformou para poder sair de sua antiga ‘jaula’ e sobreviver inventando, dia após dia, e de modo precário, outras práticas de liberdade.

Todos tentamos. Sair da jaula. Ter mais liberdade. Seja com as nossas sublimações, explosões, solidões, análises, transformações, escolhas difíceis. Seja com os nossos fracassos.

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Apocalipse zumbi: uma solução para a selvageria? https://blogdosaber.com.br/2023/07/18/apocalipse-zumbi-uma-solucao-para-a-selvageria/ https://blogdosaber.com.br/2023/07/18/apocalipse-zumbi-uma-solucao-para-a-selvageria/#respond Tue, 18 Jul 2023 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=1986 Ler mais]]> Psicanálise e política 

Muito discute a Psicanálise a respeito das causas sociais. Nada é por acaso. Freud, o fundador, bem como diversos outros psicanalistas viveram o holocausto ou, pelo menos, a ideia dele. Muitos tiveram que fugir de seus países. Era uma época marcada pelo regime nazista e ideologias socialistas. Há, inclusive, quem tenha lutado pelo uso da Psicanálise na rede pública de saúde, como foi o caso de Wilhelm Reich, com as suas policlínicas.

Quando nos dirigimos aos assuntos de relevância, aqui no Brasil, deparamo-nos com uma polarização política: uma direita extremista, que luta pela liberdade econômica e conquista de riqueza através do capitalismo, contra uma esquerda extremista, que defende o socialismo e distribuição das riquezas de forma mais homogênea, tirando do rico e dando para o pobre.

O poder para o rico e para o pobre

Bom, seja de lá ou de cá, o fato é que falamos de extremos. E todo radicalismo pode ser perigoso. Mas, em linhas gerais, é como uma briga entre poder e rebeldia, empregador e empregado. Um que detém a renda e esbanja poder e o outro que quase não tem renda e deseja o poder do primeiro. Assim, é a inveja. Não que não haja razões para isso. De fato, há muitas. Mas todo o ódio que circunda ambos os lados gira em torno do desejo sobre o poder: um de mantê-lo, às custas de alguém que perde, e o outro de conquistá-lo, às custas de alguém que ganha. 

Os primeiros defendem que fizeram por onde, que trabalharam, dedicaram-se, suaram, usaram de sua expertise. Já, as demais dizem que não tiveram oportunidades. Para uns, a ideia da instauração do socialismo é insustentável, para outros, essa é a solução. E chego a pensar no socialismo como um apocalipse zumbi: um ponto em que zeramos as nossas pontuações, igualamo-nos. Finalmente, ninguém é mais que ninguém. Talvez, uma bela oportunidade de invertermos as nossas posições nesse jogo de xadrez.

A selvageria do reconhecimento

A Psicanálise tem um discurso ferrenho sobre o capitalismo selvagem, diz que ele seria o responsável pelo adoecimento das pessoas: ansiedade, depressão etc. Bom, é inegável a sua participação nisso. Mas não ele somente. Existem diversos pontos a serem considerados numa discussão como essa. 

Parece-me que o conservadorismo, por exemplo, não deveria estar relacionado ao capitalismo. Conservar a família faria parte de uma ideia de perpetuação da espécie, além, claro, do medo que temos de sermos resumidos a pó, de sermos esquecidos quando passamos dessa para melhor. Ou seja, é bem verdade que muitos querem perpetuar também as suas conquistas, os seus impérios. Mas esse é apenas um adendo, pois, no final das contas, o império se traduz na lembrança do que alguém foi, que relevância esse alguém teve. Para ler mais sobre a busca pelo reconhecimento, acesse Por que fazem corpo mole? Entendendo a dialética do reconhecimento.

E quanto ao papel do estado? 

Pagamos altos impostos, mesmo recebendo pouco. A empresa em que trabalhamos paga quase o valor de um salário nosso para dar ao estado. O que poderia ser usufruído por nós! Ainda por cima, o estado nos faz pagar por um plano de saúde particular, uma segurança particular, entre outras necessidades, simplesmente porque os impostos que pagamos não são transformados em serviços de qualidade. 

E, então, pergunto: quanto é preciso trabalhar para bancar tudo isso? 

Há algumas dezenas de anos, trabalhar 44 horas semanais podia até ser uma necessidade do próprio ser humano, talvez, de fugir um pouco de casa, do marido, da esposa, dos filhos, uma forma de se entreter. No entanto, hoje, as coisas são diferentes. Já temos entretenimentos muito além do que conseguimos dar conta. A percepção de tempo é completamente outra. Assim, hoje, a necessidade é fugir PARA casa, não DE casa.

Muita coisa mudou e não dá pra pensar sempre da mesma forma. O estado também tem sempre um papel fundamental em como as pessoas se sentem frente ao dinheiro e frente a elas mesmas. E, apesar do vai e vem de mandatos, a essência do estado permanece a mesma. Não importa se entra comunista ou capitalista, quem está no poder sempre quer mais. Há muito de interesse e quase nada de ideal. 

Quem ainda não percebeu isso: Que “o homem é o lobo do homem”?

Essa frase era frequentemente usada pelo filósofo Thomas Hobbes para explicar a natureza humana: egoísta e má, especialmente em seu “Leviatã”. Para explicar que o homem é o maior inimigo dele mesmo. Parece-me que não importa que bandeira ele erga. O homem é homem antes de qualquer bandeira. Em busca de ser, em busca de ter, em busca de se fazer reconhecer…  De repente, você é um leão caçando a presa. De repente, você é um sobrevivente matando zumbi. De repente, você é um oportunista. De repente, você é um selvagem tirando vantagem, com ou sem apocalipse.

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Afinal, o que é essa tal de Psicanálise? https://blogdosaber.com.br/2023/05/16/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/ https://blogdosaber.com.br/2023/05/16/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/#respond Tue, 16 May 2023 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=1515 Ler mais]]> Tentando colocar o pingo no i

O conceito da Psicanálise é tão complexo, que fica difícil defini-la, explicá-la e, por consequência, propagá-la. Sigmund Freud, o seu fundador, precisou usar uma linguagem mais acessível para que pudesse convencer as pessoas de suas teses e, finalmente, difundir a Psicanálise. Por esse motivo, ele é o favorito e, em contrapartida, também o mais rechaçado. Afinal, às vezes, para tornar fácil a compreensão, é preciso ser um pouco rude – não é à toa que a expressão “a grosso modo” está na boca do povo.

O meu primeiro contato com a segunda figura mais importante da Psicanálise, Jacques Lacan, gerou-me um bocado de angústia, para ser bem sincera. Na hora, pensei “filho da mãe! Escreveu pra ninguém entender!”. Bom, até então, eu nem sabia que ele nada havia escrito de fato. As suas obras são´, na verdade, transcrições de seus seminários, na maior parte, feitas pelo genro Jacques-Alain Miller. O fato é que eu só comecei mesmo a entender Lacan quando eu já tinha, pelo menos, dois anos de análise pessoal.

A Psicanálise não fica por aí. Há diversos outros grandes contribuintes, como Melanie Klein, Wilhelm Reich, Donald Winnicott, Wilfred Bion, Anna Freud, além de seus sucessores. Cada um com sua visão um pouco mais específica, um pouco contrariada ou, poderíamos dizer puramente, cada um com a sua referência. Ponto. Porque, afinal, é disso que se trata a Psicanálise: ver com os próprios olhos.

Sem padrão

Na Psicanálise, não existe uma receita, um passo-a-passo, um padrão. E isso se justifica pelo fato de todos sermos indivíduos, ou seja, seres únicos. Cada caso é um caso e o papel principal do Psicanalista é ouvir o paciente, para que ele possa se ouvir e, finalmente, tornar-se analisante do seu próprio case.

Não existe, portanto, espaço para conselhos. O analisante deve chegar sozinho as suas próprias conclusões. O analista está ali basicamente para direcionar o paciente para as questões que realmente importam, ou seja, para aquilo que o paciente vem apontando inconscientemente como possíveis origens do que ele apresenta como queixa e entende como problema.

E essa é uma das questões que dificultam o merchandising da Psicanálise: o psicanalista nada pode prometer. Tudo é muito subjetivo e a análise depende de n variáveis para progredir: a disposição e disponibilidade do analisante, a disposição e a disponibilidade do analista, se a química cerebral do analisante está equilibrada, se a análise pessoal e a supervisão do analista estão em dia, entre outras.

Liberdade

De uma forma bem grosseira, talvez até mais do que aquela com que Freud costumava se expressar (risos), eu diria, de acordo com a meu próprio ponto de vista, que experimentar a psicanálise, se não for vive-la, é pelo menos dar uma lambida na liberdade. Porque psicanalisar é compreender o que você deseja apesar dos outros. É apreender que nada é para sempre, que tudo depende de um referencial e que existe um mundo de possibilidades.

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Guerra ao amor: por que insistimos no erro? https://blogdosaber.com.br/2023/03/21/guerra-ao-amor-por-que-insistimos-no-erro-do-lado-obscuro-do-amor/ https://blogdosaber.com.br/2023/03/21/guerra-ao-amor-por-que-insistimos-no-erro-do-lado-obscuro-do-amor/#respond Tue, 21 Mar 2023 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=1057 Ler mais]]> Baita amor romântico!

Na psicanálise, costumamos dizer que você se apaixona basicamente por dois motivos: ou você encontrou alguém que admira e gostaria de ter sido ou é alguém com quem você se identifica de alguma forma. “Ah, nós somos iguaizinhos: pensamos da mesma forma, gostamos das mesmas coisas”.

“E, afinal, o que ela tem que me faz querer ficar nesse relacionamento?”. A resposta é sempre a mesma: algo de familiar. Ela te lembra alguém que você muito admirou. Talvez, até você mesmo. E esse é o motivo pelo qual naturalmente insistimos em algumas relações que, muitas vezes, são infrutíferas, cansativas e, até mesmo, abusivas. Esse é o lado obscuro do amor!

Mas abusivas pra quem?

À exceção dos casos em que o indivíduo é ameaçado de morte, todos continuamos em relacionamentos abusivos porque temos um ganho em algum ponto. Ou o seu parceiro é seu ídolo (seja pelo que você gostaria de ser seja pela similaridade entre vocês), ou você não consegue ficar sozinho ou depende dela financeiramente. Ah, e, claro, tem também o “achar que depende”.

O fato é que quando nos comprometemos com algo, não queremos falhar. Afinal, não se trata somente de você e da outra pessoa com quem está, trata-se também de toda a comunidade, todas as pessoas que te cercam. Vão questionar e, por mais que o problema seja realmente única e exclusivamente do casal, você vai querer se explicar. Que trabalheira, não?

Assim, ficamos à procura de argumentos: “mas ela é linda”, “mas ele cozinha tão bem”, “mas o sexo é o melhor que já tive”, “mas ele dá tanta atenção à minha família”, “mas ela é tão carismática, todos os meus amigos a acham incrível”, “mas ele até me ajuda com as atividades domésticas!”. E seguimos empurrando o relacionamento com a barriga, sem perceber o lado obscuro do amor.

The check, please!

No final das contas, basicamente, permanecemos num relacionamento, digamos, caótico ou entediante, por dois motivos: ou porque não nos suportamos e precisamos de alguém para nos dizer, pelo amor de Deus, o contrário, que “sim, eu sou suportável” ou porque eu me admiro tanto que preciso estar cercada de pessoas como eu. Ou seja, sempre há um ganho. Mesmo que o saldo não seja positivo. Sim, pois amamos e odiamos. E, nesses casos, o ódio é sempre maior que o amor.

Cego em tiroteio

No entanto, quando estamos no relacionamento, não conseguimos enxergar os problemas claramente. É como uma pessoa que sofre de astigmatismo sem os seus óculos: ela vê que há algo ali, vê formato, cor, tamanho, mas está tudo embaçado e fica impossível dizer exatamente do que se trata. Estamos envolvidos, há forças internas e pessoas querendo nos influenciar a seguir no sentido contrário, cada vez que forçamos a vista e tentamos enxergar melhor.

Por isso sofremos tanto ao final de um relacionamento, mesmo sendo aquele abusivo. Mesmo sendo aquele babaca ou aquela pilantra. E por isso, nas fases do luto, passamos pela fúria e, em seguida, pela euforia, logo após a desvinculação com o ‘ex-objeto amoroso’. Saímos do envolvimento e, finalmente, conseguimos ver.

E, afinal, é erro ou não é?

Bom, para a Psicanálise, não existe certo ou errado. Existe, sim, o “até que ponto você banca isso?”. Se, para compreender uma situação, é preciso passar por ela, como podemos chamar de erro a trajetória do conhecimento? Um amor só acaba quando se torna insustentável para pelo menos um dos integrantes. E, para que se torne insuportável, é preciso primeiro fazê-lo valer.

Insistir no erro do amor é tão natural quanto nascer pelado. Mas o tempo que leva para nos darmos conta do “até que ponto eu banco isso?” vai depender do nível de entendimento de cada indivíduo sobre o seu próprio desejo.

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O tal do diagnóstico: afinal, o que tenho? https://blogdosaber.com.br/2023/02/21/o-tal-do-diagnostico-afinal-o-que-tenho/ https://blogdosaber.com.br/2023/02/21/o-tal-do-diagnostico-afinal-o-que-tenho/#comments Tue, 21 Feb 2023 11:00:00 +0000 http://blogdosaber.com.br/?p=683 Ler mais]]> Todo mundo quer saber o que tem. Afinal, qual o meu problema? E quando finalmente descubro… e, agora, o que faço com isso? 

Sobre o diagnóstico

Pois é. De fato, o diagnóstico é importante para direcionar o tratamento, mas, à exceção dos casos que requerem acompanhamento médico, ele não é fundamental. Afinal, se fosse, só seria possível iniciar um tratamento psicanalítico a partir do diagnóstico. Mas, na prática, a história é outra. 

Em muitos casos, levam-se anos para identificar a qual estrutura psíquica pertence o sujeito. E isso a matemática explica: existem infinitas combinações de fatores que nos levam a perceber as coisas de diferentes formas. Tratam-se de pessoas, ambientes e experiências em muitos diferentes formatos e intensidades. Tudo isso compõe o indivíduo. Portanto, da mesma forma que os números racionais são infinitos, ou seja, eu tenho 1 e 2, mas também 1,999999, as bordas entre uma estrutura e outra são extremamente estreitas. 

Uma neurose obsessiva, por exemplo, pode beirar uma psicose. E é por isso que mesmo pessoas não psicóticas, podem vivenciar eventos de delírio ou momentos de negação da realidade. 

A fuga do real

Bom, se parássemos para analisar minuciosamente a nossa psique, perceberíamos que, mesmo num indivíduo neurótico, a fuga do real é constante. E, que, alias, somos especialistas em desenvolver e viver fantasias. Mas, pasmem, não é isso que define um indivíduo paranoico! A fantasia, na verdade, é um recurso que barra a paranoia… Opa, que confusão! Pois é, chegar a um diagnóstico, de fato, não é moleza. Mas qual a lição dessa história, afinal? 

As fases e os seus sintomas

A estrutura ou o diagnóstico não pode ser aquilo que define o sujeito. Aliás, nada define o sujeito. Até porque, como diria Heraclito, não se entra duas vezes no mesmo rio. Estamos em constante transformação. Mais ou menos evidentes, dependendo de quem se trata. 

As fases pelas quais o indivíduo vai passando durante a sua vida podem alterar os sintomas. Mas a questão principal aqui é que o sujeito pode transitar entre diferentes estruturas, apresentando traços de caráter distintos: são as formas que o indivíduo encontra para lidar com suas angústias, com o simples intuito de sobreviver. No final das contas, é isso que importa: como o sujeito lida com os seus sintomas. Não importa quais recursos ele utilizou. Quanto mais recursos ele utilizar, maiores serão as suas chances de sobreviver.

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Por que fazem corpo mole? https://blogdosaber.com.br/2023/02/14/dialetica-do-reconhecimento/ https://blogdosaber.com.br/2023/02/14/dialetica-do-reconhecimento/#respond Tue, 14 Feb 2023 11:00:00 +0000 http://blogdosaber.com.br/?p=515 Ler mais]]> Entendendo a dialética do reconhecimento
O narcisismo no jogo do reconhecimento

O ser reconhecido faz parte da construção da estrutura narcísica em todo indivíduo. O reconhecer a minha imagem diante de um espelho, o reconhecer a minha presença diante do olhar enquanto me alimento através do seio ou da mamadeira, o reconhecer a minha necessidade de me alimentar, o reconhecer a minha dor quando tenho cólicas, o reconhecer as minhas palavras e atitudes cada vez que me exprimo. Por isso, as figuras maternas e paternas são essenciais no fortalecimento do ego do sujeito: afinal, para que haja reconhecimento, é preciso que alguém reconheça.

Reconhecer é conhecer de novo. Ou seja, reconhecer é lembrar. E a gente só lembra de alguém através de atitudes: ou foi algo que esse alguém fez ou foi algo que esse alguém disse. E, a partir do momento em que se forma uma civilização e passamos a viver em sociedade, o reconhecer deixa de ser uma função exclusiva daquele que gerou e passa a ser de todos que nos cercam. Por isso, sentimo-nos desconfortáveis quando alguém entra no elevador e não nos cumprimenta. Sentimo-nos desconhecidos, invisíveis, excluídos. 

A civilização contra a liberdade

Quando falamos de sociedade, falamos de teoria de formação de grupos, ou seja, de psicologia das massas. Para entrar em um grupo, é preciso aceitação. Em outras palavras, aceitação é aprovação a partir de identificações. Assim, as pessoas fazem amizade ou se agregam porque se identificam umas com as outras. No entanto, quando se trata de fazer parte de uma sociedade, as identificações ficam bastante a desejar, afinal, são muitos os “poréns”.

Se o sujeito quer participar dessa sociedade, ele precisa abrir mão de fragmentos de sua liberdade. Da mesma forma, quando o indivíduo é contratado para trabalhar em uma empresa, ele também é convidado a abrir mão de vários aspectos dessa liberdade para poder cumprir as regras. Fazendo um cálculo rápido, o sujeito entende que a troca da liberdade por regras é justa, tendo em vista que essa é a condição para ser aceito ou reconhecido naquela comunidade ou quadro de colaboradores.

Por mais contraditório que pareça, quando não há regras, há sofrimento

Para o filósofo e sociólogo alemão Alex Honneth, o sofrimento deriva da exclusão e da indeterminação. Dentro de uma empresa, a indeterminação pode fazer referência à falta de regras ou ao não entendimento delas por parte dos colaboradores, quando as regras, por exemplo, são confusas.

A exclusão é mais óbvia: trata-se de não se sentir parte de algo, de não se sentir útil, de não se sentir contribuinte de um bem maior. Isso acontece quando falta engajamento e delegação de competências por parte dos gestores ou quando a própria empresa não possui um plano de carreira ou objetivos claros – o que entra novamente em indeterminação, pois, se a empresa não tem bem definidos os seus objetivos, o colaborador também não consegue definir as suas metas dentro dela. 

Sem regras, não há metas. Sem metas, não há reconhecimento. E, sem reconhecimento, não há negocio. Porque o negocio é ser reconhecido. Então, vira terra sem lei e cada um faz como entende que é menos sofrido. Afinal, nessa terra, parece haver espaço para cada um criar as suas próprias regras, certo?

Em suma

Lembre-se: todo mundo quer ser importante ou, pelo menos, sentir-se assim. Mas quando a troca da liberdade pelas regras não mais se sustenta, por uma questão de economia de energia psíquica, o sujeito tende a procurar a vantagem ou o custo benefício em outro tipo de relação, seja dentro ou fora da sua empresa.

Fique atento aos sintomas: se na sua empresa você tem a impressão de que as pessoas normalmente não estão dando o melhor de si ou que a rotatividade de gente é anormal, alerta vermelho! Isso é um problema estrutural. O sofrimento é generalizado: para os colaboradores, que não se sentem reconhecidos, e para os processos, que acabam não evoluindo. 

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