Deborah Braga, Autor em Blog do Saber https://blogdosaber.com.br/author/deborah-braga/ Cultura e Conhecimento Fri, 03 May 2024 22:08:57 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.4.3 O que o caso Jujuba pode nos ensinar? https://blogdosaber.com.br/2024/05/07/o-que-o-caso-jujuba-pode-nos-ensinar/ https://blogdosaber.com.br/2024/05/07/o-que-o-caso-jujuba-pode-nos-ensinar/#respond Tue, 07 May 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4927 Ler mais]]> Relato sobre Jujuba

O caso Jujuba é um relato psicoterapêutico real dessa criança sob o carinhoso pseudônimo Jujuba. Talvez, fazendo referência aos seus cabelos, elemento central nessa trama existencial.  Jujuba é uma menina negra de 9 anos de idade, de classe média, residente do estado do Rio de Janeiro. Sua avó materna a leva até à nova psicóloga, depois de alguns episódios que findaram em internações hospitalares.

Jujuba comeu pasta de dente, jogou água sanitária em seu próprio corpo, bebeu álcool e ansiava por produtos de limpeza no intuito de remover a cor de sua pele. Nas sessões de terapia, ela alegava que alguns colegas de classe “implicavam com o seu cabelo, com seu nariz, boca, tom de pele e outros aspectos físicos de seu corpo”. Quando reclamava para a professora, Jujuba era negligenciada em seu sofrimento, pois ela nada fazia.

Assim, para sobreviver, Jujuba precisou encontrar maneiras de lidar com esse sofrimento. Uma delas eram as tentativas de reparar características físicas que nada tinham para ser reparadas. A outra delas era a prática da violência contra aqueles que a faziam sentir-se humilhada. Rebaixada a uma posição a que Jujuba sabia que não pertencia. Dessa forma, ela se tornava agressiva e ao pedir ajuda, a professora retrucava: “se continuar batendo nas coleguinhas assim, não vai poder reclamar quando for xingada. O que você quer, menina? Você é preta mesmo.”

Preta sinônimo de feia?

Mesmo em meio àqueles de seu próprio sangue, Jujuba não experienciava situações muito diferentes daquelas na escola. Uma vez, por acidente, ela deixou cair suco no tapete da tia, que, tomada de cólera, respondeu: “você já é preta, nem parece minha sobrinha, e ainda fica assim, com essa falta de educação”. Ao que o caso indica, Jujuba nasceu em uma família multirracial. Tendo perdido recentemente a sua mãe negra – talvez sua maior referência da cultura afro entre os familiares de sua convivência – e sendo bombardeada de desagradáveis comentários sobre a sua própria aparência, a percepção de Jujuba sobre si mesma não poderia ser das melhores.

Jujuba, então, “se achava feia porque era negra e de cabelo crespo”. Frequentando lugares de maioria branca e livres de diversidades culturais, a referência de Jujuba era a Europa e, portanto, a única saída possível até então era se tornar branca. Mas eis que uma identificação e um manejo sensível de sua nova psicóloga negra e crespa mudam aquele destino tão lamentavelmente branco.

O delírio do submundo

Sendo negra e tendo abraçado, de fato, a cultura afro, a nova psicóloga de Jujuba tinha não somente psique como ferramentas para sustentar a transferência com a pequena. Jujuba foi finalmente apresentada às histórias do submundo, à cultura africana, que a sociedade brasileira faz questão de apagar, esconder, como se fosse pecado ou irrelevante. No entanto, numa sociedade em que mais da metade da população é composta por pardos e negros declarados, quantas Jujubas serão necessárias se internarem ou transformarem seus cabelos e narizes, apenas para que todos finjamos que a supremacia é branca?

O que o caso Jujuba pode nos ensinar? Que professores e psicoterapeutas precisam ser urgentemente reciclados? Que a educação necessita de sérias reformas para que novos pais e políticos sejam formados cidadãos atuantes em uma democracia mais representativa? Ou que apenas semelhantes podem se ajudar? E que o racismo não passa de uma fábula, ou melhor, um delírio?

A lei

Para os desavisados, a pluralidade étnica, cultural e religiosa no Brasil, hoje é garantida pela Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08, “que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena em todas as escolas publicas e particulares do Ensino Fundamental até o Ensino Médio”.

Eis o parágrafo primeiro:

O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

Bem como o parágrafo segundo:

Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)
O fantasma da lei

Embora já possua mais de 16 anos, muitos são os desafios na implementação dessa lei: falta de formação adequada – professores que “não possuem conhecimento suficiente nas culturas indígena e afro-brasileira” -, “resistência e preconceito por parte de alguns segmentos da sociedade” e a falta de materiais didáticos.

Palavras da psicóloga de Jujuba:

A falta de materiais didáticos que tragam imagens positivas do negro e do índio e que não demonizem a suas heranças religiosas demonstra de maneira consistente a discriminação sofrida por essas crianças na escola.

Apesar dos desafios, todos sabemos que é possível. E não só possível, é necessário e constitucional. Em artigo da IMAP, alguns pontos são levantados para facilitar a adequação das escolas à Lei 11.645/2008. São elas:

  • “Formação continuada: é necessário incentivar e promover a formação continuada dos professores, oferecendo cursos e capacitações que abordem as temáticas indígena e afro-brasileira.”
  • “Parcerias com a comunidade: as escolas também devem buscar parcerias com comunidades indígenas, quilombolas e africanas, envolvendo-as no processo educativo. Essa troca de experiências e conhecimentos enriquece o aprendizado dos alunos e fortalece os laços com as diferentes culturas presentes no país.”
  • “Recursos tecnológicos: os recursos tecnológicos digitais permitem a pesquisa em diferentes fontes e disponibilizam materiais ricos e adequados à lei. Esses recursos devem estar disponíveis para os professores e alunos, facilitando a sua utilização em sala de aula.”

Além dessas, podemos pensar na aquisição de livros que tragam a criança negra como protagonista, como Bruna e a galinha D’angola; Contos Africanos; Adamastor, o Pangaré; Menina bonita do laço de fita; A semente que veio da África; Chuva de manga. Bem como na adoção de referências a intelectuais negros que trazem tanta contribuição à humanidade: Frantz Fanon, Grada Kilomba, Neusa Santos Souza, Cida Bento, Bell Hooks, Isildinha Baptista Nogueira, Ignacio Augusto Paim Filho, Augusto Maschke Paim.

História, verdade, escolha

Conhecer a história do Brasil na integra não se trata apenas de inclusão. Não se trata de ser bom ou de deixar de ser mau. Não é sobre ser ou não ser supremo, ser ou não ser ativista. Trata-se, sim, de tomar consciência da verdade, de nos conhecermos e reconhecermos. De gerar a possibilidade de escolha. Porque a escolha só é possível a partir do conhecimento. Fora disso, estamos reduzidos e presos à crença da certeza.

O caso Jujuba foi escrito pela especialista em Psicologia Clínica, Marta Velasque Ribeiro. Está no livro Casos Clínicos 2: Infantil, organizado pela professora do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro, Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo, a partir da supervisão do atendimento clínico.

Aproveite para ler também O negro e o branco no prevalecer-se da moral.

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Baby Reindeer: a vida como ela é https://blogdosaber.com.br/2024/04/30/baby-reindeer-a-vida-como-ela-e/ https://blogdosaber.com.br/2024/04/30/baby-reindeer-a-vida-como-ela-e/#respond Tue, 30 Apr 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4851 Ler mais]]> A minissérie

A minissérie da Netflix, ‘Baby Reindeer’ (no português, ‘Bebê Rena’), alcançou o primeiro lugar no streaming após uma semana do seu lançamento. O que era para ser uma simples história de perseguição com tom de comédia logo se transforma em um thriller complexo e angustiante. Cuidado, aqui, contém muitos spoilers!

‘Baby Reindeer’ conta a história do próprio Richard Gadd, protagonista e criador da série, começando e terminando pela perseguição de uma mulher obcecada por ele. Gadd expõe a sua vida, família e intimidades que normalmente lutamos para encarcerar. E, talvez, essa seja a maior surpresa: a exposição de traumas e conflitos internos de um homem. Tudo para justificar o tempo que ele levou para denunciar a sua perseguidora, sob o codinome Martha.

Seis meses que só foram interrompidos pela denúncia porque os problemas provenientes da perseguição alcançaram e colocavam em risco outras pessoas do seu círculo social. Gadd se pegou em uma relação de dependência com Martha, que o admirava e o incentivava a seguir com a sua carreira tão desejada de comediante. Finalmente, Gadd era reconhecido por alguém, o que o remete, mais tarde, a um homem de seu passado, sob o codinome Darrien, que também teria visto algo de especial nele.

A revelação

Martha e Darrien não apenas adoravam Gadd, eles queriam algo em troca: a sua atenção, o seu corpo, o seu sexo. Ambos sedutores, com as suas armas, ambos abusadores. Gadd, abusado por um homem e por uma mulher, tendo a sua sexualidade violada, remexida, virada do avesso, questiona-se quanto às suas preferências sexuais, procurando, inclusive, uma resposta no envolvimento com uma mulher trans.

O mais interessante de toda essa história é que Gadd é só mais um no meio de tantos homens e mulheres que são abusados e se deixam abusar, com questões que não conseguem sanar. ‘Baby Reindeer’ expõe a crueza da vida e incita em nós uma tentativa de revelação: das nossas fragilidades, tendências, desejos mais íntimos. Masoquistas, sádicos, obsessivos, perversos, narcisistas. São diversos os traços de caráter que nos circundam e ameaçam a nossa integridade. Integridade no sentido de inteiro, de manter-se no eixo.

A série não tem um final feliz. Nem triste. O final segue fiel à retratação da vida real, a vida como ela é: cheia de desafios, alegrias e frustrações. A vida como ela é: de dúvidas e eternas insatisfações.

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E onde fica o suposto saber do professor? https://blogdosaber.com.br/2024/04/23/e-onde-fica-o-suposto-saber-do-professor/ https://blogdosaber.com.br/2024/04/23/e-onde-fica-o-suposto-saber-do-professor/#respond Tue, 23 Apr 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4806 Ler mais]]> A desvalorização do profissional

No Brasil, apesar de a profissão de professor nunca ter sido muito valorizada financeiramente falando, até alguns anos atrás, a ela era atribuído confiança por parte dos pais e respeito por parte das crianças. Os adultos confiavam naquele que ajudava a educar os seus filhos e, como extensão desse sentimento, as crianças aceitavam as propostas desse que era visto como substituto de seus pais em ausências programadas.

Com a era digital e o acesso desenfreado à informação, crianças e pais tendem a “saber” mais do que a sua compreensão é capaz de alcançar. O que faz com que detenham mais poder mesmo com argumentações desfalcadas ou superficiais. Aproveite para ler também Pais e filhos tentam sobreviver à era digital. Como resultado, temos educadores desvalorizados pelo seu suposto saber. Professores vivendo com o medo de serem acusados de alguma inadequação em suas metodologias. Ou de se encontrarem em situações que demandam repreensão de crianças cujos pais assumem deter o saber, acima de qualquer autoridade.

Os filhos utilizam-se de seu acesso desenfreado às tecnologias para expor professores em suas atividades – a quase todo momento, desafiadoras, tendo em vista que lidam com pessoas vulneráveis e, a priori, destituídas de responsabilidades -, muitas vezes, desrespeitadas e questionadas pelos pais através dos primeiros.

A fragilização do sistema

Os casos de professores afastados ou na iminência de se afastarem de suas atividades por burn out, ansiedade ou mesmo por demissão, envolvidos em polêmicas geradas por pais, acumulam-se pelo país. Se as escolas acatam reclamações infundadas destes, sem se questionar qual o seu papel na sociedade, sem estudar e definir as melhores estratégias na formação de um ser humano bem como no manejo de pais que assumem a detenção do saber, a educação vai, então, fragilizando-se e tornando-se insustentável.

Veja bem, não é que as instituições não precisem ser questionadas. Pelo contrário, elas devem ser questionadas. Mas o que estamos questionando é pertinente à nossa posição de pai ou mãe? A crítica não deve ser direcionada apenas às colocações outras, mas às nossas próprias fundamentações. Afinal, o que me leva a crer que eu saiba mais de educação em escolas do que alguém que estudou para isso e se dedica todos os dias a isso? E que soluções estou propondo em contrapartida? Elas atendem o contexto social?

Costumamos esquecer que as instituições são ambientes públicos, que não atendem demandas específicas de pais – que, claro, não se encaixem como necessidade especial dos filhos. Elas têm que trabalhar para atender o todo da melhor maneira possível. Afinal, o papel da escola nunca foi o de dar continuidade à educação que os pais dão em casa. O papel da escola é introduzir a criança na sociedade. Uma sociedade repleta de diversidades culturais e de situações e indivíduos que a frustram, mas que mesmo assim devem ser respeitados em suas individualidades. O papel da escola vem naturalmente no contra fluxo daquele que cabe ou que, talvez, não caiba, mas do qual os pais da contemporaneidade acabam se apropriando: o de superproteção.

O tal do suposto saber

Na psicanálise, o analista deter o suposto saber, a priori, é fundamental para que haja transferência e que se dê início a um tratamento. Da mesma forma, nas escolas, faz-se necessário que os professores também assumam esse lugar, para que as crianças consigam se integrar à sociedade de maneira adequada. Porque, assim como na análise, o indivíduo se torna sujeito e protagonista de sua própria história, na escola, a criança se torna cidadã e aprende a se responsabilizar pelos seus próprios atos.

Para que as crianças possam se questionar e, finalmente, se defender, os adultos precisam abrir mão dos supostos saberes que não lhes cabem. Afinal, é preciso compreender que cada um tem a sua função, cada um é mestre em uma área específica. Lembremos que tentar a maestria em muitas áreas diferentes pode acabar nos deixando a desejar em todas elas.

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Cohousing e exôdo urbano: um retorno ao familiar https://blogdosaber.com.br/2024/04/16/cohousing-e-exodo-urbano-um-retorno-ao-familiar/ https://blogdosaber.com.br/2024/04/16/cohousing-e-exodo-urbano-um-retorno-ao-familiar/#respond Tue, 16 Apr 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4714 Ler mais]]> De ponta-cabeça

Às vezes, tenho a nítida impressão de estar tudo de ponta-cabeça. A sensação de que o fluxo do rio mudou de sentido, fazendo com que passemos novamente por todas as coisas pelas quais já passamos. É como se tivéssemos experimentado, não tivéssemos gostado e, por não conhecermos outras possibilidades, decidimos pelo retorno.

Porque, de repente, parece que o que tínhamos antes era melhor. Mas será que era melhor mesmo ou simplesmente estamos tão aterrorizados com a atualidade que acabamos depositando nossas esperanças numa realidade um pouco mais familiar? Algo que não necessariamente tenhamos vivido, mas que sabemos que nossos pais e avós viveram e, mais importante, que sobreviveram.

Escitalopram ou êxodo?

Na semana passada, falamos sobre a dificuldade de pais e filhos em lidarem com a era digital, no texto Pais e filhos tentam sobreviver à era digital. Cada vez mais assuntos vêm à tona entre os chamados “pais atentos”, pondo à prova o exercício profissional de professores, juristas e representantes do povo. Questões relacionadas à construção de crenças das crianças são polemizadas diariamente. Uma verdadeira confusão, que não deixa de ser interessante por propor de forma oculta uma revisão dos nossos conceitos ou pré-conceitos.

Os “pais atentos”, que, neste momento, estão na fase de cuidar dos filhos bem como dos pais. Numa era alucinante, com um tempo que corre quase à velocidade do som. Como dar conta? Escitalopram. Ou êxodo.

Se você leu “escitalopram” e não compreendeu, parabéns, você é um dos últimos dos moicanos. O que não significa que a espécie moicana tenha sobrevivido. Você poderá ser o próximo. Ou poderá se isolar da civilização em um paraíso azul ou verde, à sua escolha, onde fundará o seu próprio povo e suas leis próprias. Assim, deu-se origem ao cohousing.

Uma nova tendência…

Segundo Rosangela Rachid, arquiteta e urbanista paulistana, em entrevista à Época Negócios, explica que “Cohousing é uma espécie de condomínio pensado para promover a cooperação, o sentimento de pertencer e a troca de experiências.” A ideia ainda engatinha no Brasil, mas é popular na Europa e nos Estados Unidos: “um antídoto para combater a solidão e melhorar a qualidade de vida”.

O combate a uma solidão que se espalha desenfreadamente por entre condomínios cada vez mais populosos, meios de comunicação cada vez mais robustos e pessoas cada vez mais investidas de debate. Porém, um debate, muitas vezes, vazio. Sem proposta de construção ou reflexão. Sem intenções de coletivizar. Um debate que, muitas vezes, se transforma em monólogo. Ou doutrina. Assim, apesar de a era digital prover meios de facilitar a comunicação entre sujeitos, ela acaba provocando um efeito contrário. Talvez, seja muita informação para um HD humano ainda tão primitivo. O resultado é um sistema que “buga” ou que responde lentamente.

Então, quando o concreto já parece opacar em demasia as nossas vidas, tentamos retornar à natureza, ao micro, às pequenas coisas, aos pequenos grupos, como as tribos “pré-civilizatórias”. Assim, pessoas com interesses em comum, hoje, buscam se reunir e, além de outras coisas, conviver em espaços coletivos dentro de uma determinada privacidade. No Brasil, o cohousing começa como um espaço destinado a envelhecer com qualidade, como mostra a reportagem da BBC, Os amigos que se uniram para construir vila no interior de SP para viver juntos na velhice.

Para envelhecer, para viver, para tentar ser feliz

Afinal, a pirâmide etária já se inverteu, estamos vivendo mais e esse é um dos novos desafios enfrentados pelos brasileiros: como ter qualidade de vida na chamada “melhor idade”? E como fazer jus a essa expressão?!

No RN, o historiador Hélio Oliveira deu origem à Vila Feliz, um espaço de tranquilidade, vida em comunidade e simplicidade. A inicialmente pousada e, agora, condomínio fechado está localizado no distrito de Pium, possui 42 unidades habitacionais de 36 m² – inspiradas nos antigos aldeamentos missionários jesuítas -, capela e pátio. Vila Feliz está de pé há quase 30 anos, o lugar que Oliveira escolheu para se aposentar. Mas ele conta em entrevista à Tribuna do Norte que, além dos aposentados, dentre os inquilinos, também estão professores, estudantes, artistas e “gente de passagem pela capital potiguar que compartilha entre si o gosto por uma vida simples”.

Oliveira complementa:

“As pessoas ligadas a filosofias alternativas e grupos exotéricos, de uma espiritualidade diferente, sempre falam que em Pium há um portal de luz. Quando elas entram na Vila Feliz já disseram que é como se entrassem num tempo diferente, conectado com um mundo distante.”

Talvez, um mundo não tão distante, mas que, definitivamente, parece mais acolhedor do que o que vivemos hoje.

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Pais e filhos tentam sobreviver à era digital https://blogdosaber.com.br/2024/04/09/pais-e-filhos-tentam-sobreviver-a-era-digital/ https://blogdosaber.com.br/2024/04/09/pais-e-filhos-tentam-sobreviver-a-era-digital/#respond Tue, 09 Apr 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4677 Ler mais]]> Os problemas de uma nova era

Quem nunca ouviu um “ah, mas na minha época, não era assim!”? De fato, não era nem mais será. A era digital, que insisto em trazer nesta coluna, constrói um contexto completamente diferente para as últimas gerações.

A parentalidade deverá ser repensada conforme os novos contextos vão surgindo. Não será possível criar os nossos filhos como os nossos pais nos criaram. Nem que escapássemos à civilização. 

Um artigo da BBC publicado na semana passada fala das famílias norte-americanas que perderam filhos por suicídio e overdose e estão processando empresas como Meta, proprietária do Facebook e do Instagram, Google, administradora do YouTube, Snap, dona do Snapchat, e ByteDance, com o TikTok. 

“As ações alegam que a ‘crise de saúde mental sem precedentes entre as crianças’ é alimentada pelos produtos ‘defeituosos’, ‘viciantes’ e ‘perigosos’ dessas empresas.” Em contrapartida, “as empresas rejeitam as alegações e afirmam que estão constantemente implementando e atualizando ferramentas e recursos para proteger crianças e adolescentes em suas plataformas.”

Dentro da civilização que, agora, segue pela era digital, impera o capitalismo. As famílias das vítimas acreditam que empresas que controlam as redes sociais “incorporam deliberadamente em seus produtos uma série de recursos de design destinados a maximizar o envolvimento dos jovens para gerar receitas publicitárias.”

Bom, apesar de familiares, a novidade dessas alegações é que, hoje, tudo acontece de uma forma muito rápida e expansiva, sendo possível atingir um público de milhões de pessoas em alguns segundos.

No entanto, não é novidade alguma que as empresas irão sempre se munir de argumentos e encontrar brechas e até mesmo lacunas enormes em legislações criadas outrora. 

Álcool, drogas e redes sociais

Tentando seguir a mesma linha de raciocínio, encontro um outro artigo: Por que o álcool é tão perigoso para o cérebro dos jovens. Neste, questiona-se: “deveriam os governos definir a idade legal mínima de 25 anos ou mais” para se consumir álcool, levando em consideração que é apenas em tal período que o cérebro termina de se desenvolver? 

Para contextualizar o leitor, o artigo alega que “pesquisas científicas vêm desmentindo antigas crenças sobre o consumo de álcool pelos jovens”, a começar pela idade do desenvolvimento cognitivo e pela ideia, por exemplo, de que “permitir que os jovens bebam em casa com as refeições ensina a eles o consumo responsável do álcool”.

A neuropsicóloga Lindsay Squeglia da Universidade Médica da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, alega ser um mito a afirmação:

a introdução lenta do álcool em contextos controlados ensina os jovens a beber com segurança e reduz o consumo de álcool em excesso com mais idade, enquanto a restrição leva a bebida a ser um tentador ‘fruto proibido’
Leis parental e governamental

Pelo contrário, Squeglia aponta:

As pesquisas demonstraram que, quanto mais permissivo for o pai com o consumo, maior a probabilidade de que o filho tenha problemas com álcool em fases posteriores da vida.

Bom, tendo em vista os dois artigos, que denunciam o desespero dos pais e a sua esperança em contar com a lei para ajudar a criar os seus filhos, trago uma reflexão para nos auxiliar a pensar a educação: que responsabilidade é essa que retiramos dos nossos ombros e lançamos ao Estado?

Até quando esperaremos os órgãos públicos se manifestarem sobre questões que nós, indivíduos e cidadãos, também deveríamos buscar compreender? Questões geradas por empresas que, inclusive, temos o poder de boicotar.

Reminiscências

A permissividade para com o consumo de drogas bem como de mídias sociais pelos filhos fala também de uma possível dependência ou do próprio estilo de vida dos pais. As mídias não exploram apenas as gerações mais jovens, mas estas estão mais vulneráveis, visto que:

  • nasceram na era digital,
  • ainda estão em fase de desenvolvimento e,
  • a priori, possuem mais tempo livre do que seus pais.

Então, pensando que somos espelhos para os nossos filhos, como esperar que comam bem, se comemos mal? Como esperar que não se entorpeçam, se precisamos de “ajuda” para dormir? Como esperar que consumam menos telas, se, para escaparmos do barulho das crianças ou da chatice dos adolescentes, calamos suas bocas com entretenimentos digitais? Ou se para sobrevivermos com os nossos próprios problemas, refugiamo-nos nas vidas de outras pessoas?

Parece estranho termos que buscar formas de proteger os nossos filhos sempre fora de nós, fora do nosso habitat, daquilo que nos deveria ser mais acessível. Você não acha? Afinal, o gozo, que nos entrete enquanto fugimos do que realmente é importante para nós, diria Lacan, é aquilo que escapa e não se submete a nenhuma lei.

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Férias, trabalho, liberdade! https://blogdosaber.com.br/2024/04/02/ferias-trabalho-liberdade/ https://blogdosaber.com.br/2024/04/02/ferias-trabalho-liberdade/#respond Tue, 02 Apr 2024 10:43:03 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4596 Ler mais]]> O desejo de férias é sempre movido por alguma demanda: crise, cansaço, vaidade, responsabilidades e por aí vai. Além, claro, da necessidade oculta de se livrar daquilo que é conhecido inconscientemente por sacrifício. Pelo menos, para aqueles que não encontram prazer em seu ofício. 

Para quem não sabe, “A palavra trabalho vem do latim tripalium, termo utilizado para designar instrumento de tortura”. Apesar de, hoje, ser uma condição necessária para a liberdade dos indivíduos dentro das sociedades, “Em alguns momentos representa castigo divino, punição, fardo, incômodo, carga, algo esgotante para quem o realiza”. Para saber mais, leia O significado do trabalho em tempos de reestruturação produtiva.

O encontro com o prazer não tem a ver apenas com identificação e remuneração, mas com o que aquele ofício lhe proporciona fora do seu habitat. O que vai variar com as prioridades de cada indivíduo.  

Em uma era tão digital e capitalista, a produtividade e a redução de custos são prioridades para o empregador. Mas será que também são para o empregado? Quanto isso custa ao colaborador? Tempo com a família? Tempo de lazer? Princípios? Liberdade? O trabalho, então, acaba gerando uma contradição: a liberdade que barra a liberdade.

O resultado disso é: aumento no número de pessoas afastadas de seus empregos por problemas de saúde mental e crescente de pessoas migrando da carteira assinada para o trabalho autônomo. O que gera sérias consequências para um país e seu sistema previdenciário. 

Mas isso é assunto para um outro texto. Agora, a minha prioridade é retornar ao desfrute da sombra e água fresca que esses dias de férias têm me proporcionado. Aproveite para ler também Descanso: artigo de luxo? e até semana que vem! 

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O negro e o branco no prevalecer-se da moral https://blogdosaber.com.br/2024/03/26/o-negro-e-o-branco-no-prevalecer-se-da-moral/ https://blogdosaber.com.br/2024/03/26/o-negro-e-o-branco-no-prevalecer-se-da-moral/#respond Tue, 26 Mar 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4494 Ler mais]]> O filme

O filme ‘Ficção Americana’ teve cinco indicações ao Oscar este ano, ganhando o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado. Ele mostra a vida do professor e escritor Thelonious (mais conhecido pelos familiares como Monk), revoltado com a indústria literária. 

Monk é um homem negro, nascido em uma família de classe média alta, e possui uma escrita refinada e, digamos, sofisticada. Ele tem dificuldade em publicar as suas obras pois as editoras não o consideram “negro o suficiente”. O que é uma sátira à forma como as polarizações encaixotam grandes questões da humanidade, tornando-as tão polêmicas.

Apesar de negro, Monk não possui a vida da periferia ou as desqualificações esperadas pelos brancos do filme. O que pode denunciar, inclusive, uma possível forma desse branco continuar se sentindo superior em relação ao negro, já que ele promove a ascensão do negro a partir de sua ignorância, miséria e infortúnio. 

A ética, a moral e a razão

O que chama mais atenção no filme são as diversas percepções lançadas em torno da negritude, da branquitude, da ética, da moral e da razão. Há cenas de racismo do branco em relação ao negro, do negro em relação ao branco e do negro em relação a ele mesmo. 

Enquanto Monk tenta representar a intelectualidade negra, seu irmão carrega um não-estigma do “branco rico que não deu certo” e, Sintara, uma outra escritora negra no filme, revela uma divergência lógica com Monk, falando da importância de se mostrar a realidade dos guetos, afirmando ser a realidade de seu povo, apesar de, a priori, não ser a sua própria.

Embora defenda a sua lógica com unhas e dentes, Sintara assume que, de fato, vende-se à indústria literária, mas rebate Monk com questões importantes. Ou seja, no final das contas, cada um tenta viver as suas vidas conforme lhes aprazem: os brancos ricos fingindo que não há racismo e lucrando em cima da causa negra, a negra, a priori, rica lucrando a partir de um ideal que não é dela e um negro ex-rico que, talvez, acredite ser branco. 

Um filme leve, divertido e com muitos pontos importantes de abordagem. Reflete a vida como ela é: brancos e negros em diferentes posições sociais, com seus pontos de vista a partir das suas vivências. Polaridades, refletindo a nossa dificuldade de aceitar a verdade do outro, acreditando haver uma única realidade: a nossa própria.

O livro

O que me faz pensar novamente em ‘O Avesso da Pele’. Mas, no Brasil, acontece de forma inversa ao que ocorre em ‘Ficção Americana’: em vez de aceitação pelos brancos, repúdio, ódio, suspensão, exclusão. No entanto, ainda podemos pensar que, como o próprio nome diz, trata-se de pura ficção. Mas ficção contemporânea também é a nova denominação de gêneros de ‘Fuck’ e ‘We’s lives in da guetto’, obras fictícias do filme ‘Ficção Americana’, assim como de ‘O Avesso da Pele’.

É claro que as culturas brasileira e americana são bem distintas uma da outra, o que influi diretamente na forma como se formam os grupos e como funciona o capitalismo dentro desses grupos. Prova disso é que a diferença de renda entre raças no Brasil é consideravelmente maior do que nos Estados Unidos.

Brasil versus EUA

Em 2016, a Pew Research levantou diversas informações de rendimentos de brancos, negros, hispânicos e asiáticos nos EUA. Os dados mostram, por exemplo, que em 90% da população, a diferença de renda entre brancos e negros é de 31,8%; em 10%, 45,7%, resultando em uma média de 35,2%. Outra informação importante é que não são os brancos que lideram as maiores rendas, mas os asiáticos. 

Já, no Brasil, em 2022, segundo o IBGE em matéria da InfoMoney, a renda média do branco é 75,7% maior que a do negro, sendo que “Entre pessoas com nível superior completo, o rendimento médio por hora dos brancos foi cerca de 50% superior ao dos pretos e cerca de 40% superior ao dos pardos.”.

O jogo do prevalecer-se

Dados como esses podem nos dar indicações do que se esperar de uma população ao esbarrar com grandes questões da humanidade. Afinal, quanto maiores as diferenças salariais entre raças, maior a tendência de um povo a se prevalecer em termos financeiros. Isso quer dizer que, para que eu me sinta superior, eu preciso ter mais que o outro. Já, quando os salários vão se equiparando, a tendência é que eu busque uma outra forma de me prevalecer em cima do outro. O que pode ser através do físico ou do intelecto, por exemplo. 

Esse é o jogo da sociedade civil do qual Immanuel Kant fala:

Kant descreve a relação humana na sociedade como a disputa em um jogo, em que cada um testa as suas forças com os outros. Esse jogo teria sido engendrado, inicialmente, pela natureza, a fim de pôr em atividade o ser humano e fazer com que a sua força vital em geral se preservasse da extenuação e se mantivesse ativa.

A prevalência é um instinto natural do homem: instinto de sobrevivência, que nos primórdios tentava garantir as necessidades fisiológicas, como o alimentação, e permanência da espécie. Hoje, superadas as necessidades básicas, o homem tenta garantir a sobrevivência do seu ego, que pode ter diferentes representações e intensidades de país para país e, inclusive, de cidade para cidade, dentro de um mesmo país. 

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O Avesso da Pele: de Tenório a Calligaris https://blogdosaber.com.br/2024/03/19/o-avesso-da-pele-de-tenorio-a-calligaris/ https://blogdosaber.com.br/2024/03/19/o-avesso-da-pele-de-tenorio-a-calligaris/#comments Tue, 19 Mar 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4408 Ler mais]]> O avesso do que é visível e palpável 

A grosso modo, essa seria a tradução livre do tema central abordado no livro do escritor e colunista da Folha de São Paulo Jeferson Tenório, ‘O Avesso da Pele’. 

Citação do livro (J. Tenório, p. 61):

Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, 
pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo 
e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso,
você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. 
[…] Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único.
E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.

Depois de atravessarmos uma maré de escândalos iniciada pela diretora de uma escola estadual em Santa Cruz do Sul, que quase baniu a obra em escolas de 18 municípios do Rio Grande do Sul e que, de fato, tiraram-na de circulação em outros estados para “avaliação”, restam ainda as polêmicas.

Perfil do livro

‘O Avesso da Pele’ é uma ficção contemporânea que aborda o racismo no Brasil. Conta a história de um jovem que teve seu pai morto em uma abordagem policial. Pedro é um jovem negro da periferia, que tenta buscar as suas origens e o sentido das vidas daqueles que o cercam, inclusive, dele mesmo. Trata das relações familiares dentro de um caráter existencial.

Citação do artigo de opinião da Brasil de Fato RS:

O protagonista nos vai levando da infância à vida adulta na sua busca pela história e a vida do pai brutalmente assassinado por um policial perverso que julgou ser senhor sobre a vida de um professor pacato que lutou a vida inteira para dar um pouco de dignidade à família, ao filho que agora deverá buscar seu corpo e a si mesmo.

Vencedor do Prêmio Jabuti – o mais tradicional prêmio literário do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) – em 2021, a obra de Jeferson Tenório passou por uma seleção em 2019 e foi aprovada e inserida no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2022. A estadual Ernesto Alves foi uma das escolas que escolheu o livro para ser usado em 2024, conta matéria da Brasil de Fato RS

Debate e polarização

Tenório se manifestou na sua página do Instagram:

O Avesso da Pele já foi adotado em centenas de escolas pelo Brasil, venceu o prêmio Jabuti, foi finalista de outros prêmios, teve direitos de publicação vendidos para mais de 10 países, foi adaptado para o teatro. Além disso, o livro foi avaliado pelo PNLD, em 2021, ainda no governo Bolsonaro. A própria diretora assinou a ata de escolha do livro.

A diretora da escola Ernesto Alves, Janaina Venzon, teria publicado um vídeo nas redes sociais, onde denuncia a obra de Tenório, categorizando-a como inadequada e tendo como argumento a explicitação de cenas de sexo. No entanto, o livro traz outras diversas questões que na nossa sociedade ainda caem em polêmica, como a religião candomblé, a crítica às escolas porto alegrenses e ao sistema educacional brasileiro, além da exposição da violência policial. Veja mais em Censura a O Avesso da Pele de Jeferson Tenório

Bom, esse assunto acabou, pra variar, polarizando o país. Dividindo a população entre conservadores, que acabaram sendo chamados de “grupos bolsonaristas”, e progressistas, conhecidos também por “petistas”. Um lado acusa o outro de “distorções e fake news”, enquanto o outro acusa um de ser “só uma questão ideológica, sem soluções concretas”. Ou seja, um acusa o outro, em ambos os sentidos, de pura pantomima.

Inclusive, discussões entre os chamados “grupos bolsonaristas” acrescentam nas críticas ao livro a exposição ao uso de drogas e a palavrões. Veja mais em Qual é o papel dos pais na educação dos seus filhos na sala de aula? Bancada debate.

Sobre digerir um assunto…

Mesmo que restasse a dúvida se Janaína Venzon teria aprovado ou não o livro de Jeferson Tenório em sua escola, há algo que fica muito claro, desde a denúncia até a sua entrevista pelo portal Gaz, que é o fato da diretora e sua equipe não saber como trabalhar a obra com os seus alunos.

Não saber trabalhar um conteúdo revela problemas na digestão desse assunto. Um celíaco, por exemplo, não consegue digerir o glúten. Se ele o ingere, vários sintomas se manifestam em direção ao desconforto. No caso dos psicanalistas e outros psicoterapeutas, se eles não são acompanhados terapeuticamente, ocorrem entraves nas sessões dos seus pacientes. Eles só poderão ir com um paciente até onde eles foram em suas próprias análises pessoais. Por isso é tão comum pessoas reclamarem que suas psicoterapias não avançam e até mesmo da sensação de que, em algum momento, elas acabam sendo analistas de seus próprios terapeutas. 

Então, apesar de muitos profissionais precisarem atuar de forma imparcial em suas atividades, estão vulneráveis às suas crenças, fraquezas e incompreensões.

O real está velado?

É interessante, nessa discussão, chegarmos à seguinte conclusão: que enquanto um grupo quer escancarar, o outro prefere velar. Mas estamos falando da verdade, do real? É isso que está para ser escancarado ou velado?

Criança por trás de uma cortina que impede uma visão clara das coisas

A fala do jornalista Roberto Motta no programa ‘Os pingos nos is’ é, no mínimo, curiosa. Ele diz que o que está presente no livro de Tenório é algo que seus filhos não têm conhecimento. Digamos que seus filhos não acessem esse tipo de conteúdo de forma alguma através da internet, de fato, muitas famílias de classe média desconhecem a vida na periferia. Afinal, é fato que a cultura de uma para outra difere absurdamente. Mas, tendo em vista que boa parte da população brasileira – segundo o site do Ipea, 29% – se encontra nas favelas, não seria plausível que todos os brasileiros tomassem conhecimento dessa realidade, de forma a evitarem uma alienação sobre o seu próprio país? 

Em termos de real, não seria o mesmo que assistir aos clássicos ‘Hotel Rwanda’ e ‘Diamante de Sangue’ e ao mais recente sucesso dos cinemas, ‘Som da Liberdade’?

A infância moderna no Brasil

Conforme já abordado no artigo O jovem contemporâneo: um sujeito sem lei?, resgatando essa intenção de proteger os jovens contra, digamos, a realidade nua e crua, em seu ‘Hello, Brasil!’, Contardo Calligaris critica a infância moderna, colocando-a como uma extensão da demanda dos pais:

Citação do livro (C. Calligaris, p. 237):

… a infância moderna – esse prolongado limbo social – foi inventada para satisfazer as novas necessidades da subjetividade adulta: particularmente, a necessidade de conquistar status pelas vias do sucesso e, portanto, de projetar em suas crianças um sonho de felicidade social nem sempre realizável ou realizado na vida do adulto.

E, trazendo as diferentes experiências sociais no Brasil, critica também a “estratificação social radical” bem como a “fraca representação comunitária” no país, que dividem o jovem moderno em:

Citação do livro (C. Calligaris, p. 238):

… filhos/as de excluídos sociais para quem, de qualquer forma, o fundamento comunitário da lei não tem valor. Eles veem na exclusão de seus pais o fracasso da comunidade… “Não reconheço a lei, mas tenho que ser feliz; então vale tudo”;
… filhos/as das classes médias que frequentemente verificam em seus pais um desprezo cínico pela comunidade… os sonhos parentais de sucesso e ascensão social está acima da lei… Então vale quase tudo;
… filhos/as das ditas elites para quem a obrigação de ser feliz pode ser acompanhada pela convicção de que os pais – e a sua classe – seriam os únicos e arbitrários donos da lei. Então vale tudo mesmo.
Exclusão e violência

Calligaris entende que, em vez de uma relação direta entre pobreza e criminalidade, o que existiria é a ligação entre criminalidade e exclusão. Ele afirma que, no Brasil, “não se sabe bem sobre que base construir uma comunidade” e questiona se é possível “fundar – na representação de todos ou quase todos – a autoridade da lei.”

Ao final de seu livro, Calligaris faz algumas propostas que poderiam ser adotadas pelo governo, no intuito de trazer soluções para os problemas por ele levantados, entre eles: “a abolição de qualquer tipo de regime de prisão especial”, que a corrupção de dinheiro público seja considerada crime hediondo – “desbanalizando” essa “violência criminosa da elite” -, “ação de policiamento de tolerância zero contra a deterioração do espaço público”, o aumento dos salários de policiais e educadores e “um eventual plano “terapêutico”, por assim dizer, da autoimagem da polícia”. E vai mais a fundo:

Citação do livro (C. Calligaris, p. 245-246 e 249):

PROPOSTA 1
… proponho que sejam impostos, como disciplina obrigatória em todo o ensino superior do país, no mínimo dois semestres de serviço comunitário… O que importa é que o contato prolongado com as margens excluídas da sociedade brasileira faça parte obrigatória da educação dos rebentos das elites. Ou seja, que não seja possível passar dos Jardins para um arranha-céu da Paulista via universidade americana sem ter passado algum tempo na zona sul profunda de São Paulo, por exemplo.
(…)
PROPOSTA 5
Estudos experimentais mostram um aumento vertiginoso dos índices de marginalidade e de criminalidade quando, em um bairro pobre, a porcentagem de habitantes de classe média é reduzida abaixo de um definido índice (5%…)… Uma comunidade fortemente estratificada deve combater a segregação habitacional para oferecer sempre a representação da mobilidade social…
Um programa deveria ser estabelecido contra a segregação do habitat.
Do conhecimento ao reconhecimento

Em suma, Calligaris defende o conhecimento em primeiro lugar. E quando se fala de conhecimento, tratamos da ciência, ou melhor, da consciência. Consciência do que existe por aí e, até mesmo, ao lado de nossas casas. Com que pessoas estou lidando? Qual é a sua realidade? Afinal, se os políticos saem da elite, como poderão saber a necessidade da população mais carente? E todos nós somos políticos em potencial, certo? Ou melhor, todos somos políticos, pois participamos de uma sociedade, temos direito de voto e possuímos vozes.

O problema é que em qualquer sociedade nem todos terão as mesmas oportunidades de se fazerem ouvir. Não falo apenas daqueles mais desfavorecidos economicamente falando, mas de todos aqueles que se sentem invisíveis ou subestimados, seja por aparentarem ou pensarem diferente, seja por constituírem grupos socialmente construídos em cima de estereótipos: negro burro, mulher fraca, nordestino preguiçoso. ‘O Avesso da Pele’ propõe olharmos para o que está por trás da carcaça do burro, do fraco, do preguiçoso; propõe um olhar para o invisível. Afinal, todos os indivíduos sentem necessidade de reconhecimento, para que a sua existência seja validada.

Convenções e o livro enquanto formador

No mais, os tais livros proibidos sempre existiram. Eles eram proibidos conforme as convenções das sociedades. Mas nunca deixaram de ser lidos se havia oportunidade. Hoje, o mesmo ocorre com blogs, vídeos, canais, filmes etc. Ficando a cargo dos pais controlar o conteúdo que seus filhos acessam, através de senhas, que os jovens acabam dando um jeito de decifrar. Assim, os pais fingem que controlam seus filhos, enquanto os filhos fingem que são controlados.

Embora os livros façam parte da formação, aumentando a capacidade cognitiva e crítica dos indivíduos, já que trazem conhecimento, não importando se é “certo” ou “errado”, não são eles que definem o sujeito. Pelo contrário, os conteúdos dos livros só poderão ser classificados como “certo”, “errado”, “apropriado”, “inapropriado”, “relevante” ou “irrelevante” a partir da formação do sujeito que, por sua vez, depende das figuras maternas, paternas e do meio em que foi criado.  

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A mulher frente ao Estado e à ciência https://blogdosaber.com.br/2024/03/12/a-mulher-frente-ao-estado-e-a-ciencia/ https://blogdosaber.com.br/2024/03/12/a-mulher-frente-ao-estado-e-a-ciencia/#respond Tue, 12 Mar 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4367 Ler mais]]> Dia Internacional da Mulher

Passado o dia internacional da mulher, suas homenagens e menções honrosas, encontramo-nos ainda no mês dela. Ocasião que o comércio aproveita para estender e, nós, mulheres, aproveitamos para usufruir. Passadas as ofertas e comemorações, ficando em segundo plano a luta histórica em que quase 130 operárias reivindicavam igualdade salarial e acabaram morrendo carbonizadas, restam-nos, então, as estatísticas.  

Violência doméstica, assédio moral e sexual em ambiente de trabalho, feminicídio, aborto e planejamento familiar. Esses são tópicos que normalmente pertencem ao “campo de batalha” da mulher, quando deveria ser de interesse de todos os envolvidos. Afinal, todos são filhos, além de avós, pais, tios, irmãos, colegas.

Direito ao aborto

Na semana passada, “A França se tornou o primeiro país do mundo a incluir o direito da mulher ao aborto na Constituição”. Veja citação de artigo da BBC

O aborto é legal na França desde 1975, mas o presidente Macron comprometeu-se a consagrá-lo na Constituição após a Suprema Corte dos Estados Unidos ter revertido a decisão Roe contra Wade, em 2022.

O caso Roe contra Wade se deu em 1973 na Suprema Corte dos Estados Unidos, onde uma mulher grávida, Jane Roe (pseudônimo de Norma McCorvey), entrou com uma ação em busca do aborto de seu terceiro filho, alegando ter sido estuprada. O promotor público que recebia o caso era Henry Wade, defensor da lei antiaborto. 

Apesar do processo de Jane Roe ter sido deferido, com o tempo, ativistas antiaborto acabaram obtendo algumas conquistas, como:

  • lei proibindo “o uso de fundos federais para o aborto, exceto quando necessário para salvar a vida de uma mulher” em 1980;
  • restrições proibindo “abortos em clínicas estaduais ou por funcionários públicos” em 1989;

Entre outras… Até que em 2022, “A Suprema Corte decidiu a favor da proibição do aborto no Mississippi após 15 semanas de gestação”, abrindo precedentes para novas restrições e proibições. Veja mais em Roe x Wade: o que muda com decisão da Suprema Corte dos EUA sobre aborto? 

Os números falam por si

Bom, os números apontam que 85% dos franceses são a favor da emenda constitucional. Portanto, neste caso, podemos dizer que a população em geral entende que o aborto é uma opção necessária. Nos Estados Unidos da América, uma pesquisa de opinião mostrou que 58% dos norte-americanos acreditam que o aborto deve ser legal em todos ou na maioria dos casos. Saiba mais em artigo do Poder 360. Já, no Brasil, a pesquisa divulgada no ano passado apontou que apenas 39% dos cidadãos são a favor nesse tema. 

É claro que entre Brasil, Estados Unidos e França existem diferenças culturais significativas. A começar pela influência direta do tempo de existência desses Estados e da solidificação de suas leis e constituições, o que define, inclusive, um acesso maior ou menor à educação. 

Países em que o acesso à educação e à independência financeira da mulher é maior tendem a contabilizar menos casos de gravidez forçada ou indesejada. E isso significa dizer que os custos do Estado com procedimentos abortivos devem ser menores em comparação a países mais novos. Afinal, argumentos sobre verbas municipais, estaduais e federais sempre entram em pauta, especialmente quando tratamos de Estados laicos.

Estado laico

O Brasil, apesar de laico, possui uma representatividade cristã extremamente alta. Uma pesquisa de 2023 divulgada pela BBC News mostrou que “quase nove a cada dez brasileiros dizem, por exemplo, acreditar em Deus”.

O índice de 89% de crença em um poder superior coloca o Brasil no topo do ranking de 26 países elaborado pelo Ipsos, com base em uma plataforma online de monitoramento que coleta informações sobre o comportamento destas populações.

Dos 89%, 70% afirmaram ser cristãos, católicos e evangélicos em sua maior parte. Isso significa dizer que, apesar de laico, a partir do momento em que as leis são feitas por seres humanos, que experimentam as suas vidas baseadas em crenças, o seu entendimento do que é melhor para a sociedade necessariamente será pautado nessas experiências. Especialmente em se tratando de países cujas constituições ainda não sofreram um processo de amadurecimento tão longo.

Casos em evidência como o do hospital particular São Camilo, em São Paulo, que se recusou a implantar um DIU (dispositivo intrauterino) em uma paciente enviada pelo SUS, acontecem e seguirão surgindo. Apesar do hospital ter convênio com o SUS, ele informou que “não faz procedimentos contraceptivos — em mulheres ou homens”, apenas em casos graves de saúde, como endometriose. Nesse caso, afirma ter orientado “a paciente a buscar outro prestador de serviço dentro da rede credenciada do plano de saúde”. Veja mais em artigo do Conjur.

Mais tarde, o Consultor Jurídico publicou o texto Juiz evoca liberdade de crença para rejeitar ação contra hospital que negou DIU, onde o entendimento do caso pelo juiz é: 

O ato de negar o implante de um dispositivo intrauterino (DIU), usado como método contraceptivo, é válido quando o estatuto social do hospital deixa claro que se trata de uma associação civil, de caráter confessional católico.

No entanto, após a decisão, o presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP, Henderson Fürst, faz a seguinte crítica:

O planejamento familiar é um direito fundamental expressamente estabelecido pela Constituição, pela Lei do Planejamento Familiar, pela Lei 8.080/1990, e também pela Lei 9.656/1998, ou seja, é um direito tanto no sistema público quanto no sistema suplementar de saúde. Um hospital pode se recusar a realizar o procedimento somente se não estiver na rede de procedimentos contratados com a operadora de saúde. Se estiver contratado, ou se o atendimento é no âmbito do SUS, não há objeção de consciência institucional assegurada por lei — mas há, sim, direito ao planejamento familiar determinado por lei.
A faculdade de julgar: o Estado frente à ciência

Fica mais claro, então, o que significa uma constituição pouco madura e, ao mesmo tempo, a ideia de uma nação dividida entre o antiaborto e o pró-aborto. 

A ideia aqui não é julgar o aborto ou os métodos contraceptivos, mas tentar entender o por quê da posição do nosso Estado em diferentes mandatos, bem como por que a nossa constituição possui tantas brechas. 

Quando se fala de legislação, normalmente, existe um apoio na ciência, certo? Mas, então, por que certas questões como “Quando uma célula se torna uma pessoa?” apresentam posições tão contraditórias? Pois o que era, até então, comum no Alabama, tornou-se uma prática proibida nas clínicas de fertilidade. Três casais norte-americanos conseguiram reverter a legislação estadual, determinando que todos os embriões passassem a ser considerados crianças, depois que tiveram destruídos acidentalmente os seus materiais fecundados. A prática segue operante no restante do país. Leia também Quando uma célula se torna pessoa? O consenso científico sobre a polêmica dos embriões.  

Assim, retornamos à questão da leitura da ciência a partir de um determinado ponto de vista, colocada no último artigo desta coluna, Crítica do saber prático: psicanálise é filosofia:  

Em outras palavras, Hegel diz que os saberes em relação às coisas da vida são construídos a partir da experiência do sujeito, que, por sua vez, encontra-se no mundo físico. Então, apesar da experiência se encontrar na história da mecânica newtoniana, juntamente à ciência, o saber que se produz dela depende da interpretação ou da ligação do sujeito com o mundo, que, então, enquadra-se no movimento da dialética, dentro do campo da metafísica.

O Estado é laico, tendo como premissa a não admissão da influência religiosa na conduta governamental, no entanto, é liderado por pessoas de fé. E, como parte ainda da premissa, deve “respeitar, proteger e tratar de forma igual todas as religiões, fés e compreensões filosóficas da vida”, embora seja governado por seres que nem tudo sabem e nem tudo toleram.

O Estado é laico, mas as pessoas não o são. 

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Crítica do saber prático: psicanálise é filosofia https://blogdosaber.com.br/2024/03/05/critica-do-saber-pratico-psicanalise-e-filosofia/ https://blogdosaber.com.br/2024/03/05/critica-do-saber-pratico-psicanalise-e-filosofia/#respond Tue, 05 Mar 2024 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=4306 Ler mais]]> Método socrático

Sócrates foi um dos pais da Filosofia ocidental. Conhecido por ser o homem que fazia muitas perguntas, Sócrates afirmava nada saber, procurando incessantemente pela verdade. Ele não dava conselhos, mas punha à prova os valores de seus alunos. As certezas eram, então, questionadas, revelando as falhas de suas lógicas. Qualquer semelhança com a psicanálise não é mera coincidência!

Bom, as longas discussões levavam ambas as partes do diálogo a alcançarem uma melhor compreensão sobre os assuntos, que, em geral, envolviam moralidade e sociedade. 

Platão e Xenofonte se sentiram tão inspirados com a visão de Sócrates, que acabaram criando diálogos fictícios para reproduzir esse processo de discussão desenvolvido por ele. O que, mais tarde, viria a ser conhecido como Método Socrático. Para saber mais, acesse This tool will help improve your critical thinking – Erick Wilberding

Críticas da razão

Mais tarde, Immanuel Kant começa a se questionar sobre limites: até onde é possível o conhecimento humano? Em ‘Crítica da Razão Pura’, Kant restringe o saber ao plano do sensível, ou seja, daquilo que é perceptível, que é palpável. E coloca, assim, a impossibilidade da metafísica enquanto ciência. Em outras palavras: não há como provar coisas que vão além da física.

Apesar da impossibilidade de comprovação, Kant passa a se questionar novamente sobre os limites do saber. Seria o sensível, de fato, o único plano da verdade? Assim, em ‘Crítica da Razão Prática’, ao desenvolver sua teoria sobre a ética, ele resgata objetos metafísicos, como a liberdade, formulando, então, as suas concepções.  

Ainda mais tarde, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em seu ‘Fenomenologia do Espírito’, questiona o peso da ciência, que Kant tanto defendeu em ‘Crítica da Razão Pura’, em face da verdade da natureza, da experiência:

… o que significa para a consciência experimentar-se a si mesma através de sucessivas formas de saber que são assumidas e julgadas por essa forma suprema que chamamos ciência ou filosofia?
O pensamento hegeliano

E Hegel vai além do domínio da ‘Crítica da Razão Prática’, ao propor a “faculdade de julgar” ou a “verdade da certeza de si mesmo”. É quando se introduz a dialética articulada “entre a certeza do sujeito e a verdade do objeto”. 

… um sujeito que é fenômeno para si mesmo ou portador de uma ciência que aparece a si mesma no próprio ato em que faz face ao aparecimento de um objeto no horizonte do seu saber.

Em outras palavras, Hegel diz que os saberes em relação às coisas da vida são construídos a partir da experiência do sujeito, que, por sua vez, encontra-se no mundo físico. Então, apesar da experiência se encontrar na história da mecânica newtoniana, juntamente à ciência, o saber que se produz dela depende da interpretação ou da ligação do sujeito com o mundo, que, então, enquadra-se no movimento da dialética, dentro do campo da metafísica. 

E as origens da psicanálise

Bem mais tarde, no campo da psicanálise, Jacques Lacan se debruça sobre o estudo do discurso, que ele chama de cadeia de significantes, bem como da irrupção do equívoco na língua. Em seu seminário 22 ‘R.S.I.’, ele teoriza sobre o funcionamento da cadeia significante, que seria composta por três registros: o real, o simbólico e o imaginário (RSI), sendo o equívoco uma forma como o real se manifesta.

No entanto, pouco depois, Michel Pêcheux, filósofo e linguista francês, considerado um dos fundadores da análise do discurso, defende que “o objeto da Linguística não existe sem o fato estrutural do equívoco”. Leia mais em “…la onde o amor é tecido de desejo…”: lalangue e a irrupção do equivoco na língua.

Bom, e assim segue a psicanálise, nascida na filosofia, uma ciência que não é ciência porque só gera teorias, e prolongada no campo da linguística, esta sim! Assim é a psicanálise: da ordem de uma metapsicologia, algo que a própria psicologia não consegue explicar. Mas o fato de não se apalpar não implica na inverdade de inexistir, certo? Afinal, todo sofrimento esconde uma verdade baseada na existência, que so poderá ser revelada através do questionamento. Para saber mais sobre, leia também Afinal, o que é essa tal de Psicanálise?.

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