\u00c9 com muita satisfa\u00e7\u00e3o que publicamos mais um dos criativos e inteligentes contos da nossa querida Ana Madalena, que resolveu nos dar uma canja e me enviou essa p\u00e9rola com o t\u00edtulo de \u201cDesacontecimentos\u201d, aqui na nossa coluna cr\u00f4nicas desta quarta-feira. Uma hist\u00f3ria mirabolante e futurista, que se passa algumas d\u00e9cadas adiante, que ela relata com muita imagina\u00e7\u00e3o. Ent\u00e3o aproveite a oportunidade e se delicie com essa cr\u00f4nica maravilhosa.<\/p>\n\n\n\n
Estava triste e por isso resolveu escrever; dessa forma teria tempo para refletir sobre o que deixar registrado. Cada palavra seria medida e pesada, inventaria at\u00e9 algumas para explicar suas emo\u00e7\u00f5es. Depois do apag\u00e3o, que dizimou uma boa parte do mundo, tudo que restou ficara definitivo, para sempre. O futuro j\u00e1 era realidade, mas ela continuava com os mesmos dilemas de antes.<\/p>\n\n\n\n
Lembrava com saudade do ano 2025, o \u00fanico que p\u00f4de escolher para salvar na mem\u00f3ria, sem d\u00favidas, o melhor da sua vida. Finalmente conseguira engravidar, depois de muitas tentativas. Seu sonho se concretizara com as g\u00eameas, Sara e Sofia. Infelizmente, seu companheiro n\u00e3o suportou cuidar das crian\u00e7as, nem lidar com seu complicado puerp\u00e9rio, a nova rotina\u2026 Ele sumiu, para nunca mais. Se ainda estivesse vivo, deveria estar gostando desse novo modelo de vida, de pessoas com aspecto encerado e sem sentimentos. Um bando de m\u00e1quinas!<\/p>\n\n\n\n
De l\u00e1 para c\u00e1, burlava as regras, escrevendo tudo o que achava importante. Tinha que ter mem\u00f3rias, mas sabia o risco que corria. Sentia falta do velho mundo, das cores, principalmente o amarelo. O mundo cinza era profundamente triste, at\u00e9 o sol sumira do c\u00e9u, ou o que restou dele, agora mais distante ainda. N\u00e3o suportava viver numa pr\u00e9-hist\u00f3ria high-tech, com pessoas rob\u00f3ticas e para l\u00e1 de estranhas. Gostaria de ter sumido, como tantos outros. N\u00e3o lhe agradava a ideia da n\u00e3o finitude da vida; o \u201cn\u00e3o morrer\u201d era um t\u00e9dio, mas uma vez ali tinha que ser renovada a cada d\u00e9cada. A aplica\u00e7\u00e3o do chip, al\u00e9m de dolorosa, era obrigat\u00f3ria. N\u00e3o sabia se tivera sorte ou azar quando o primeiro, que fora implantado, na base da sua nuca, n\u00e3o funcionou. Por algum motivo, a instala\u00e7\u00e3o n\u00e3o foi conclu\u00edda com sucesso, motivo pelo qual tinha lampejos de outra realidade, outra vida. Vivia unicamente em fun\u00e7\u00e3o de descobrir algu\u00e9m que tamb\u00e9m tivesse essa falha, mas n\u00e3o era f\u00e1cil. Quem em s\u00e3 consci\u00eancia se entregaria?<\/p>\n\n\n\n
Sua rotina inclu\u00eda uma busca incessante por sua fam\u00edlia, mas tinha que ser cautelosa. Como os sentimentos e la\u00e7os familiares tinham sido extintos, as fam\u00edlias foram separadas de forma aleat\u00f3ria, para garantir que a \u201cexperi\u00eancia\u201d n\u00e3o tivesse falhas. Ser eterno e viver em um mundo sem pragas era o objetivo dos cientistas no poder. Ela sonhava com o fim, porque o fim era a solu\u00e7\u00e3o; detestava o meio, mas ela estava presa nele para sempre. E o para sempre, era muito assustador. N\u00e3o suportava viver numa eterna fic\u00e7\u00e3o-cient\u00edfica.<\/p>\n\n\n\n
Uma ideia fixa tomou conta do seu pensamento. Se daria mais uns meses para procurar sua fam\u00edlia e, depois, se n\u00e3o encontrasse ningu\u00e9m\u2026 Teria que ser cuidadosa, burlar sentimentos, sonhos e o que mais eles pudessem farejar. Ouviu dizer que \u201celes\u201d sabiam cada emo\u00e7\u00e3o, pois o portador exalava um odor apenas detectado pelo grande mestre. Tinha que se manter indiferente para n\u00e3o sentirem seu cheiro de tens\u00e3o, medo e ansiedade, embora n\u00e3o soubesse que puni\u00e7\u00e3o maior poderia ultrapassar o castigo de n\u00e3o morrer. As paredes de espelhos pareciam refletir seu olhar de ang\u00fastia. Precisava urgentemente tirar aquele olhar do seu rosto; qualquer um perceberia que ela n\u00e3o estava bem.<\/p>\n\n\n\n
Olhou a rua pela janela, daquilo que chamavam de bloco; o seu, de quatro pavimentos, parecia uma m\u00ednima parte de um lego gigantesco. Vivia a dor do c\u00e1rcere. N\u00e3o fazia ideia de como era nos andares mais altos. N\u00e3o era permitida intera\u00e7\u00e3o com outros subgrupos. Se sentia no fundo do po\u00e7o, ou melhor, uns cinco metros abaixo dele. Todo dia rezava para ter de volta sua vida de antes; sofria s\u00f3 em pensar que reclamara tanto por coisas t\u00e3o pequenas, como as cal\u00e7adas esburacadas que quase a faziam cair quando enganchava seus saltos, ou as rodinhas do carrinho das g\u00eameas. Queria seu passado, at\u00e9 as coisas que detestava\u2026 A dor de n\u00e3o ver crian\u00e7as brincando ao sol, casais enamorados, cachorros abanando os rabos, a lua no c\u00e9u, o vai e vem das ondas do mar, pessoas sorrindo, era um peso muito alto para carregar. Em pensar que todos escolheram o tempo, ou melhor, a falta dele, para ser a principal meta de trabalho do s\u00e9culo. E depois, de v\u00e1rias tentativas, finalmente descobriram como faz\u00ea-lo parar. O feiti\u00e7o virou contra o feiticeiro.<\/p>\n\n\n\n
Sentiu algo salgado na boca. Depois de uns segundos se deu conta que era uma l\u00e1grima. Abriu os olhos assustada! A luz que invadia seu quarto, tamb\u00e9m entrava nos seus olhos. Lentamente olhou ao redor, como que n\u00e3o acreditando no que via. Suas filhas dormiam nos bercinhos ao lado da sua cama. Adorava ouvi-las sugando as chupetas; sabia que quando faziam t\u00e3o fortemente, era porque estava perto de acordarem para mamar. Sentou na beira da cama, tentando colocar seus pensamentos em ordem. Olhou o calend\u00e1rio; precisava saber se voltara para 2025. De repente, viu as flores murchas no vaso em cima da mesinha de cabeceira. Abriu um enorme sorriso; finalmente tudo voltara a ser como antes!<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"