Nesta quinta-feira, excepcionalmente teremos, aqui na coluna cr\u00f4ncas, mais uma canja da nossa colaboradora ana madalena, cujo t\u00edtulo \u00e9 \u201co novo jardim\u201d. O tema gira em torno de como ficou o nosso cotidiano depois da pandemia de covid-19, convivendo com as constantes perdas, f\u00edsicas, materiais e emocionais. Portanto convido voc\u00ea para ler a bem contada cr\u00f4mica sobre perdas e ganhos em tempos de covid-19.<\/p>\n\n\n\n
Foi como um efeito domin\u00f3. Fomos caindo um por um, o que de certa forma n\u00e3o foi t\u00e3o ruim. Pior seria se ca\u00edssemos todos de uma s\u00f3 vez! Quem cuidaria de quem? Melhor assim, com pausa para se acostumar, tanto com os sintomas, quanto com os olhares desconfiados; ser\u00e1 que aquele inocente espirro era apenas um espirro inocente?<\/p>\n\n\n\n
O primeiro a ficar doente \u00e9 sempre o que anuncia o porvir e vira uma esp\u00e9cie de espelho para os outros. Como num ballet, faz iniciar uma coreografia de atra\u00e7\u00e3o e repuls\u00e3o: penalizados com o doente, os \u201csaud\u00e1veis\u201d t\u00eam a empatia de querer cuidar mas, por outro lado, denunciam o medo, legitimo, de n\u00e3o querer se infectar! Isso, claro, quando o inimigo n\u00e3o tem o nome e sobrenome de Covid-19. A impress\u00e3o que tenho \u00e9 que o mundo est\u00e1 todo infectado! E assim, depois de dois anos nos escondendo atr\u00e1s de m\u00e1scaras e face shields, o v\u00edrus entrou na nossa casa, s\u00f3 n\u00e3o sei se pela porta, janela, ou se pelos dois. Meu tio disse categoricamente que o v\u00edrus tinha entrado pelo elevador. Do jeito que falava, com riqueza de detalhes, parecia que podia enxerg\u00e1-lo a olho nu!<\/p>\n\n\n\n
A primeira pessoa que tive conhecimento de ter sido infectada pelo Covid foi minha vizinha de rua; adoeceu no come\u00e7o da pandemia, quando ainda n\u00e3o havia vacina e o medo era uma constante. Me preocupei, pois soube pelos porteiros que ela vivia sozinha; os filhos, j\u00e1 casados, moravam noutra cidade e o marido h\u00e1 muito havia \u201csumido\u201d, para nunca mais voltar. Do meu apartamento, podia ver sua casa, a \u00fanica de muro baixo, com portas de vidro e cortinas sempre abertas, o que me permitia ver parte da sua rotina. Todas as manh\u00e3s ela acordava bem cedo e se dirigia ao jardim; acho que conversava com suas plantas, principalmente as orqu\u00eddeas, que ficavam ao lado do conjunto de jardim, uma mesa e quatro cadeiras de ferro, pintadas de branco, com almofadinhas azuis. Ali, ela tomava seu cafezinho e pegava sol, sua vitamina di\u00e1ria. Aos poucos, ela se tornou parte da minha vida, pois era a primeira vis\u00e3o que eu tinha pela manh\u00e3. E, por isso mesmo, estranhei quando passados tr\u00eas dias, n\u00e3o a vi.<\/p>\n\n\n\n
Mesmo apreensiva, resolvi me dirigir \u00e0 sua casa. Abri o port\u00e3ozinho e percebi que as plantas estavam sofrendo sem \u00e1gua e sem as conversas di\u00e1rias. Descobri, no canto do muro, uma mangueira e comecei a aguar o jardim. As roseiras, murchas, logo se recuperaram!. A cada dois dias, eu ia cedinho para aquela casa e permanecia meia hora, absorta na tarefa que eu nem sabia que me fazia t\u00e3o bem!<\/p>\n\n\n\n
At\u00e9 que um dia ela voltou, depois de quase um m\u00eas internada. Suas sobrancelhas arquearam quando me viram, no in\u00edcio da manh\u00e3, conversando com suas \u201camigas\u201d. Disse-me que estava feliz, n\u00e3o imaginava que algu\u00e9m fosse cuidar de seus tesouros. E a partir daquele dia, combinei de, vez por outra, visit\u00e1-la.<\/p>\n\n\n\n
-Venha sempre que puder! Vamos tomar um caf\u00e9 juntas; eu gosto de conversar, trocar ideias! Voce sabe, quando se tem uma ideia, no m\u00ednimo se sai com duas. Pense em alguma coisa e vamos aprender juntas!<\/p>\n\n\n\n
No in\u00edcio da semana passada pensei estar gripada, depois a garganta come\u00e7ou a fechar e uma moleza foi tomando conta de mim. Foram tr\u00eas dias p\u00e9ssimos, sem conseguir comer, beber, sequer falar. S\u00f3 me restou ler, olhar minha amiga pela janela e escrever. Confesso que essa foi a primeira vez que pensei, de fato, na finitude da minha vida e como isso afetaria minha fam\u00edlia e amigos. No balan\u00e7o geral, percebi que eles n\u00e3o est\u00e3o preparados para me perder. Nem eu a eles. Esse momento mais introspectivo credito \u00e0s incertezas que vivemos. Desisti de ouvir tudo que me deixasse triste e resolvi fazer uma imers\u00e3o nas s\u00e9ries. Coincidentemente, ou n\u00e3o, escolhi uma que trata do luto; apesar do tema, confesso que me rendeu boas risadas. Virei a noite maratonando \u201cAfter life\u201d, uma das melhores coisas que vi recentemente.<\/p>\n\n\n\n
E, para minhas noites, adotei uma pr\u00e1tica que Arist\u00f3teles fazia uso para permanecer acordado. N\u00e3o, n\u00e3o eram energ\u00e9ticos, nem caf\u00e9! Vi a foto de uma escultura onde ele est\u00e1 sentado, lendo um livro, com uma bola na m\u00e3o. Uma bola pequena, como as de t\u00eanis, mas com peso, com massa, como dizem os f\u00edsicos. O objetivo era, quando estivesse lendo e, caso pegasse no sono, a bola cairia, fazendo barulho. Eu comprei umas bolas de gude e presenteei \u00e0 minha vizinha, que por muitas vezes presenciei dormindo profundamente, no seu hor\u00e1rio de leitura. Na hora que falei desse \u201ctruque\u201d, me perguntou o porqu\u00ea de n\u00e3o usarmos essa bolinha para diversas situa\u00e7\u00f5es da vida, como quando estiv\u00e9ssemos com algu\u00e9m\u2026. Ficar\u00edamos concentrados somente naquela pessoa, sem nos preocuparmos com o entorno. A bola acordaria o cora\u00e7\u00e3o!<\/p>\n\n\n\n
Aquela observa\u00e7\u00e3o me fez pensar\u2026 Infelizmente as pessoas n\u00e3o se concentram mais em nada, nem nelas pr\u00f3prias. Uma pena, at\u00e9 porque a aten\u00e7\u00e3o \u00e9 a forma mais pura de generosidade. Hoje, as redes sociais vendem aten\u00e7\u00e3o e n\u00f3s, bobos que somos, compramos essa aten\u00e7\u00e3o o tempo todo.<\/p>\n\n\n\n
Tive um sonho recorrente nesse per\u00edodo de Covid; eu dirigia por uma estrada a beira mar, com os vidros abertos. Um dos meus bra\u00e7os e meu rosto ficavam para fora da janela, como se eu nunca tivesse sentido uma brisa na vida. J\u00e1 tentei interpret\u00e1-lo, mas talvez n\u00e3o signifique nada, a n\u00e3o ser meu desejo que o calor, insuport\u00e1vel, d\u00ea lugar para temperaturas mais amenas. Por alguma raz\u00e3o, lembrei de olhar as plantinhas da minha amiga. Levei um susto quando vi as cortinas fechadas e nenhum jarro no jardim. Como que adivinhando meus pensamentos, o porteiro interfonou; disse que tinha uma not\u00edcia triste para dar\u2026 A minha amiga tinha partido dormindo, uma morte tranquila. E, sem ter no\u00e7\u00e3o da minha dor, come\u00e7ou a falar sem parar:<\/p>\n\n\n\n
\u2013 Ela estava com problemas no cora\u00e7\u00e3o e a filha veio passar uns dias com ela. J\u00e1 levaram tudo da casa, acho que vender\u00e3o para uma construtora. A rua agora vai ter pr\u00e9dio que nem presta! Era t\u00e3o tranquilo quando vim trabalhar aqui\u2026 Agora \u00e9 um entra e sai de carro nessa rua, uma zoada\u2026 Ah, deixaram uma encomenda para a senhora, foi a filha dessa senhorinha que faleceu. S\u00e3o umas plantas, est\u00e3o no jardim daqui do pr\u00e9dio. O rapaz da limpeza disse que na sua casa est\u00e3o todos com Covid e ele tem medo at\u00e9 de recolher o lixo da\u00ed \u2026 Desculpe, mas foi o que ele disse\u2026<\/p>\n\n\n\n
O porteiro ainda falou mais alguma coisa, mas n\u00e3o escutei. Ele \u00e9 desses que adora uma conversa, acho que por passar o dia numa guarita, isolado, confinado nos seus pensamentos, interrompidos aqui e ali pelo interfone.<\/p>\n\n\n\n
N\u00f3s estamos saindo do covid. Agora o efeito domin\u00f3 \u00e9 ao contrario; todo dia um de n\u00f3s fica cada vez melhor. Nesse per\u00edodo, refletimos muito sobre a vida e, realisticamente, conclu\u00edmos que teremos de conviver por muitos anos com os v\u00edrus. Vamos redobrar nossos cuidados, tanto f\u00edsico, quanto emocionalmente. E carregaremos bolinhas imagin\u00e1rias para aproveitar cada momento das nossas vidas. N\u00e3o vamos economizar na aten\u00e7\u00e3o e no amor!<\/p>\n\n\n\n
Dedico essa cr\u00f4nica a uma grande amiga que partiu essa semana e, devido ao meu estado de sa\u00fade, n\u00e3o pude dar o \u00faltimo adeus. Ela, que adorava plantas e pessoas, deve agora estar cuidando de um novo jardim!<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"