Arquivos arte - Blog do Saber https://blogdosaber.com.br/tag/arte/ Cultura e Conhecimento Mon, 28 Aug 2023 23:02:41 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.4.3 Expressões: a arte e a coragem https://blogdosaber.com.br/2023/08/29/expressoes-a-arte-e-a-coragem/ https://blogdosaber.com.br/2023/08/29/expressoes-a-arte-e-a-coragem/#respond Tue, 29 Aug 2023 09:30:00 +0000 https://blogdosaber.com.br/?p=2274 Ler mais]]> O catolicismo e a civilização

Às vezes, pode ser muito difícil colocar um sentimento para fora. Especialmente, se você nunca foi incentivado a isso ou se a sua cultura foi construída em torno da religião católica. O catolicismo traz para a história as noções de pecado e de purificação. E cria, portanto, uma sociedade controlada pelo medo: o medo de pecar ou das consequências do pecar. Medo de não ser puro ou de não conseguir se purificar após a prática do pecado.

Assim, nasce uma civilização cercada de regras, barrada em sua liberdade. Não só a liberdade de fazer o que bem se entende, o que dá na telha ou o que sentimos como impulso. Mas a liberdade como um todo. A liberdade do livre pensar, a liberdade de se exprimir. Corta-se o mal pela raiz.

É claro que para que se tenha uma comunidade, é preciso que haja leis. É preciso que algumas das nossas vontades sejam podadas. Caso contrário, o senso do coletivo se desmilingue e nos resta, então, o “Deus por todos e cada um por si”, resta-nos uma comunidade esfacelada, sem unidade, falida. 

A angústia, a arte e a coragem

A boa noticia é que a civilização deu um jeito de permitir algumas das nossas descargas emocionais, de forma que soassem mais agradáveis e menos ameaçadoras, o que a Psicanálise conhece por sublimação. Através da arte – a música, a escrita, a pintura, a escultura, a dança, as lutas ou também conhecidas “artes” marciais -, por exemplo, é possível extravasar! Vomitar. Colocar para fora tudo aquilo que se acumula em nosso peito ou na garganta. Uma secreção que não tem textura ou coloração, mas que dói, que angustia.

Assim, surge o Expressionismo no século XX e numa época em que o capitalismo ganha força e as diferenças entre as classes sociais se tornam muito evidentes. A partir daí, aparecem os movimentos sindicais e a arte passa a ser utilizada como instrumento de protesto. Um protesto que tenta calar a angústia do homem dentro de uma civilização, onde predomina o capitalismo. Uma angústia que se dá em torno do reconhecimento daquele que tenta sobreviver diante de alguém que paga e que decide o quanto pagar. Em outras palavras, uma angústia que se dá em torno do dinheiro.

Então, por enquanto, para alguns, é isso que lhes resta: a arte. Para outros, além da arte, resta o discurso. Resta o permitir-se. Um permitir-se que não chega a esfacelar uma comunidade. Resta se permitir explorar, permitir-se ser livre. Mas será que resta suficiente coragem?

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Desacontecimentos https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/desacontecimentos/ https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/desacontecimentos/#respond Wed, 30 Nov 2022 20:55:43 +0000 http://blogdosaber.com.br/?p=92 Ler mais]]> É com muita satisfação que publicamos mais um dos criativos e inteligentes contos da nossa querida Ana Madalena, que resolveu nos dar uma canja e me enviou essa pérola com o título de “Desacontecimentos”, aqui na nossa coluna crônicas desta quarta-feira. Uma história mirabolante e futurista, que se passa algumas décadas adiante, que ela relata com muita imaginação. Então aproveite a oportunidade e se delicie com essa crônica maravilhosa.

Estava triste e por isso resolveu escrever; dessa forma teria tempo para refletir sobre o que deixar registrado. Cada palavra seria medida e pesada, inventaria até algumas para explicar suas emoções. Depois do apagão, que dizimou uma boa parte do mundo, tudo que restou ficara definitivo, para sempre. O futuro já era realidade, mas ela continuava com os mesmos dilemas de antes.


Lembrava com saudade do ano 2025, o único que pôde escolher para salvar na memória, sem dúvidas, o melhor da sua vida. Finalmente conseguira engravidar, depois de muitas tentativas. Seu sonho se concretizara com as gêmeas, Sara e Sofia. Infelizmente, seu companheiro não suportou cuidar das crianças, nem lidar com seu complicado puerpério, a nova rotina… Ele sumiu, para nunca mais. Se ainda estivesse vivo, deveria estar gostando desse novo modelo de vida, de pessoas com aspecto encerado e sem sentimentos. Um bando de máquinas!


De lá para cá, burlava as regras, escrevendo tudo o que achava importante. Tinha que ter memórias, mas sabia o risco que corria. Sentia falta do velho mundo, das cores, principalmente o amarelo. O mundo cinza era profundamente triste, até o sol sumira do céu, ou o que restou dele, agora mais distante ainda. Não suportava viver numa pré-história high-tech, com pessoas robóticas e para lá de estranhas. Gostaria de ter sumido, como tantos outros.  Não lhe agradava a ideia da não finitude da vida; o “não morrer” era um tédio, mas uma vez ali tinha que ser renovada a cada década. A aplicação do chip, além de dolorosa, era obrigatória. Não sabia se tivera sorte ou azar quando o primeiro, que fora implantado, na base da sua nuca, não funcionou. Por algum motivo, a instalação não foi concluída com sucesso, motivo pelo qual tinha lampejos de outra realidade, outra vida. Vivia unicamente em função de descobrir alguém que também tivesse essa falha, mas não era fácil. Quem em sã consciência se entregaria?


Sua rotina incluía uma busca incessante por sua família, mas tinha que ser cautelosa.  Como os sentimentos e laços familiares tinham sido extintos, as famílias foram separadas de forma aleatória, para garantir que a “experiência” não tivesse falhas. Ser eterno e viver em um mundo sem pragas era o objetivo dos cientistas no poder. Ela sonhava com o fim, porque o fim era a solução; detestava o meio, mas ela estava presa nele para sempre. E o para sempre, era muito assustador. Não suportava viver numa eterna ficção-científica.


Uma ideia fixa tomou conta do seu pensamento.  Se daria mais uns meses para procurar sua família e, depois, se não encontrasse ninguém… Teria que ser cuidadosa, burlar sentimentos, sonhos e o que mais eles pudessem farejar. Ouviu dizer que “eles” sabiam cada emoção, pois o portador exalava um odor apenas detectado pelo grande mestre. Tinha que se manter indiferente para não sentirem seu cheiro de tensão, medo e ansiedade, embora não soubesse que punição maior poderia ultrapassar o castigo de não morrer. As paredes de espelhos pareciam refletir seu olhar de angústia. Precisava urgentemente tirar aquele olhar do seu rosto; qualquer um perceberia que ela não estava bem.


Olhou a rua pela janela, daquilo que chamavam de bloco; o seu, de quatro pavimentos, parecia uma mínima parte de um lego gigantesco. Vivia a dor do cárcere. Não fazia ideia de como era nos andares mais altos. Não era permitida interação com outros subgrupos. Se sentia no fundo do poço, ou melhor, uns cinco metros abaixo dele. Todo dia rezava para ter de volta sua vida de antes; sofria só em pensar que reclamara tanto por coisas tão pequenas, como as calçadas esburacadas que quase a faziam cair quando enganchava seus saltos, ou as rodinhas do carrinho das gêmeas. Queria seu passado, até as coisas que detestava…  A dor de não ver crianças brincando ao sol, casais enamorados, cachorros abanando os rabos, a lua no céu, o vai e vem das ondas do mar, pessoas sorrindo, era um peso muito alto para carregar. Em pensar que todos escolheram o tempo, ou melhor, a falta dele, para ser a principal meta de trabalho do século. E depois, de várias tentativas, finalmente descobriram como fazê-lo parar. O feitiço virou contra o feiticeiro.

Sentiu algo salgado na boca. Depois de uns segundos se deu conta que era uma lágrima. Abriu os olhos assustada! A luz que invadia seu quarto, também entrava nos seus olhos. Lentamente olhou ao redor, como que não acreditando no que via.  Suas filhas dormiam nos bercinhos ao lado da sua cama. Adorava ouvi-las sugando as chupetas; sabia que quando faziam tão fortemente, era porque estava perto de acordarem para mamar. Sentou na beira da cama, tentando colocar seus pensamentos em ordem. Olhou o calendário; precisava saber se voltara para 2025.  De repente, viu as flores murchas no vaso em cima da mesinha de cabeceira. Abriu um enorme sorriso; finalmente tudo voltara a ser como antes!

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O novo jardim https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/o-novo-jardim/ https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/o-novo-jardim/#respond Wed, 30 Nov 2022 20:43:52 +0000 http://blogdosaber.com.br/?p=89 Ler mais]]> Nesta quinta-feira, excepcionalmente teremos, aqui na coluna crôncas, mais uma canja da nossa colaboradora ana madalena, cujo título é “o novo jardim”. O tema gira em torno de como ficou o nosso cotidiano depois da pandemia de covid-19, convivendo com as constantes perdas, físicas, materiais e emocionais. Portanto convido você para ler a bem contada crômica sobre perdas e ganhos em tempos de covid-19.

Foi como um efeito dominó. Fomos caindo um por um, o que de certa forma não foi tão ruim. Pior seria se caíssemos todos de uma só vez! Quem cuidaria de quem? Melhor assim, com pausa para se acostumar, tanto com os sintomas, quanto com os olhares desconfiados; será que aquele inocente espirro era apenas um espirro inocente?

O primeiro a ficar doente é sempre o que anuncia o porvir e vira uma espécie de espelho para os outros. Como num ballet, faz iniciar uma coreografia de atração e repulsão: penalizados com o doente, os “saudáveis” têm a empatia de querer cuidar mas,  por outro lado, denunciam o medo, legitimo, de não querer se infectar! Isso, claro, quando o inimigo não tem o nome e sobrenome de Covid-19. A impressão que tenho é que o mundo está todo infectado! E assim, depois de dois anos nos escondendo atrás de máscaras e face shields, o vírus entrou na nossa casa, só não sei se pela porta, janela, ou se pelos dois. Meu tio disse categoricamente que o vírus tinha entrado pelo elevador. Do jeito que falava, com riqueza de detalhes, parecia que podia enxergá-lo a olho nu!

A primeira pessoa que tive conhecimento de ter sido infectada pelo Covid foi minha vizinha de rua; adoeceu no começo da pandemia, quando ainda não havia vacina e o medo era uma constante. Me preocupei, pois soube pelos porteiros que ela vivia sozinha; os filhos, já casados, moravam noutra cidade e o marido há muito havia “sumido”, para nunca mais voltar. Do meu apartamento, podia ver sua casa, a única de muro baixo, com portas de vidro e cortinas sempre abertas, o que me permitia ver parte da sua rotina. Todas as manhãs ela acordava bem cedo e se dirigia ao jardim; acho que conversava com suas plantas, principalmente as orquídeas, que ficavam ao lado do conjunto de jardim, uma mesa e quatro cadeiras de ferro, pintadas de branco, com almofadinhas azuis. Ali, ela tomava seu cafezinho e pegava sol, sua vitamina diária. Aos poucos, ela se tornou parte da minha vida, pois era a primeira visão que eu tinha pela manhã.  E, por isso mesmo, estranhei quando passados três dias, não a vi.

Mesmo apreensiva, resolvi me dirigir à sua casa. Abri o portãozinho e percebi que as plantas estavam sofrendo sem água e sem as conversas diárias. Descobri, no canto do muro, uma mangueira e comecei a aguar o jardim. As roseiras, murchas, logo se recuperaram!. A cada dois dias, eu ia cedinho para aquela casa e permanecia meia hora, absorta na tarefa que eu nem sabia que me fazia tão bem!

Até que um dia ela voltou, depois de quase um mês internada. Suas sobrancelhas arquearam quando me viram, no início da manhã, conversando com suas “amigas”. Disse-me que estava feliz,  não imaginava que alguém fosse cuidar de seus tesouros. E a partir daquele dia, combinei de, vez por outra, visitá-la.

-Venha sempre que puder! Vamos tomar um café juntas; eu gosto de conversar, trocar ideias! Voce sabe, quando se tem uma ideia, no mínimo se sai com duas. Pense em alguma coisa e vamos aprender juntas!

No início da semana passada pensei estar gripada, depois a garganta  começou a fechar e uma moleza foi tomando conta de mim.  Foram três dias péssimos, sem conseguir comer, beber, sequer falar. Só me restou ler, olhar minha amiga pela janela e escrever. Confesso que essa foi a primeira vez que pensei, de fato, na finitude da minha vida e como isso afetaria  minha família e amigos. No balanço geral, percebi que eles não estão preparados para me perder. Nem eu a eles.  Esse momento mais introspectivo credito às incertezas que vivemos. Desisti de ouvir tudo que me deixasse triste e resolvi fazer uma imersão nas séries. Coincidentemente, ou não, escolhi uma que trata do luto; apesar do tema, confesso que me rendeu boas risadas. Virei a noite maratonando “After life”, uma das melhores coisas que vi recentemente.

E, para minhas noites, adotei uma prática que Aristóteles fazia uso para permanecer acordado. Não, não eram energéticos, nem café! Vi a foto de uma escultura onde ele está sentado, lendo um livro, com uma bola na mão. Uma bola pequena, como as de tênis, mas com peso, com massa, como dizem os físicos. O objetivo era, quando estivesse lendo e, caso pegasse no sono, a bola cairia, fazendo barulho. Eu comprei umas bolas de gude e presenteei à minha vizinha, que por muitas vezes presenciei  dormindo profundamente, no seu horário de leitura. Na hora que falei  desse “truque”, me perguntou  o porquê de não usarmos essa bolinha para diversas situações da vida, como quando estivéssemos com alguém…. Ficaríamos concentrados somente naquela pessoa, sem nos preocuparmos com o entorno. A bola acordaria o coração!

Aquela observação me fez pensar… Infelizmente as pessoas não se concentram mais em nada, nem nelas próprias. Uma pena, até porque a atenção é a forma mais pura de generosidade. Hoje, as redes sociais vendem atenção e nós, bobos que somos, compramos essa atenção o tempo todo.

Tive um sonho recorrente nesse período de Covid; eu dirigia por uma estrada a beira mar, com os vidros abertos. Um dos meus braços e meu rosto ficavam para fora da janela, como se eu nunca tivesse sentido uma brisa na vida. Já tentei interpretá-lo, mas talvez não signifique nada, a não ser meu desejo que o calor, insuportável, dê lugar para temperaturas mais amenas. Por alguma razão, lembrei de olhar as plantinhas da minha amiga. Levei um susto quando vi as cortinas fechadas e nenhum jarro no jardim. Como que adivinhando meus pensamentos, o porteiro interfonou; disse que tinha uma notícia triste para dar… A minha amiga tinha partido dormindo, uma morte tranquila. E, sem ter noção da minha dor, começou a falar sem parar:

– Ela estava com problemas no coração e a filha veio passar uns dias com ela. Já levaram tudo da casa, acho que venderão para uma construtora. A rua agora vai ter prédio que nem presta! Era tão tranquilo quando vim trabalhar aqui… Agora é um entra e sai de carro nessa rua, uma zoada… Ah, deixaram uma encomenda para a senhora, foi a filha dessa senhorinha que faleceu. São umas plantas, estão no jardim daqui do  prédio. O rapaz da limpeza disse que na sua casa estão todos com Covid e ele tem medo até de recolher o lixo daí … Desculpe, mas foi o que ele disse…

O porteiro ainda falou mais alguma coisa, mas não escutei. Ele é desses que adora uma conversa, acho que por passar o dia numa guarita, isolado, confinado nos seus pensamentos, interrompidos aqui e ali pelo interfone.

Nós estamos saindo do covid. Agora o efeito dominó é ao contrario; todo dia um de nós fica cada vez melhor. Nesse período, refletimos muito sobre a vida e, realisticamente, concluímos que teremos de conviver por muitos anos com os vírus. Vamos redobrar nossos cuidados, tanto físico, quanto emocionalmente. E carregaremos bolinhas imaginárias para aproveitar cada momento das nossas vidas. Não vamos economizar na atenção e no amor!

Dedico essa crônica a uma grande amiga que partiu essa semana e, devido ao meu estado de saúde, não pude dar o último adeus. Ela, que adorava plantas e pessoas, deve agora estar  cuidando de um novo jardim!

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Relacionamento aberto https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/relacionamento-aberto/ https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/relacionamento-aberto/#respond Wed, 30 Nov 2022 20:38:17 +0000 http://blogdosaber.com.br/?p=86 Ler mais]]> É com muito orgulho e prazer que trago mais um texto inédito da nossa ex-colaboradora e fantástica cronista Ana Madalena para publicar, aqui na nossa coluna crônicas de todas as quartas-feiras do ano. Como sempre, é impossível não ter a curiosidade de ler do começo ao fim, não só pelo prazer, mas principalmente para ver até onde vai a sua imaginação. O título, relacionamento aberto não é, como sempre, o que imaginamos antes de começar a ler e sempre me surpreendo com o desenrolar de suas histórias. Por isso convido você a ler mais essa crônica maravilhosa dessa fenomenal escritora.

Que saudade das minhas viagens! Me orgulho em dizer que, quando planejo um passeio, sou disputada pelos amigos; dizem que na minha companhia não ficam entediados, nem sentem o tempo passar. Realmente, viajar, mesmo em pequenos grupos não é para qualquer um. Eu mesma me preparo alguns meses antes; estudo temas variados para entreter quem estiver por perto. Óbvio que sigo algumas regras, como não conversar assuntos delicados, muito menos pela manhã. Geralmente essa é a hora de conversar amenidades, contar algum sonho, eu mesma invento vários, embora na vida real não sonhe nunca. Ou se sonho, não lembro. O café da manhã tem que ser festivo, com sorrisos de bom dia. Claro que muitas vezes não são retribuídos; algumas pessoas só acordam depois das dez, mesmo que fisicamente já tenham feito várias coisas, desde as sete.  Não se brinca com o relógio biológico!


Gosto de dirigir,  fazer viagens onde possa conhecer caminhos e, sobretudo, ver paisagens (adoro a palavra “sobretudo”, dá um ar de sofisticação ao vocabulário, cada vez mais empobrecido). Viajar é uma oportunidade de aprender várias coisas e eu realmente me organizo para tirar o melhor proveito dessa experiencia; faço playlist, lanchinhos e meto o pé na estrada! A única coisa que me irrita é ter hora marcada. Geralmente viajo com hotel reservado somente na chegada e no meu destino final. O meio do caminho é sempre uma surpresa!


Não gosto de viajar de avião, principalmente voos longos. Quem gosta? Além de desconfortável, exige um grau de intimidade que me incomoda, principalmente quando meu assento é na fileira do meio, entre estranhos. Por mais que procure fazer as coisas com antecedência, selecionar meu lugar, as vezes acontece de grande parte dos passageiros terem me antecedido. E o percurso vira, no mínimo, um tédio. Geralmente levo um livro, o que me salva por algum tempo, e. rezo para que as pessoas ao meu redor não ronquem, o que invariavelmente acontece.


Nunca fiz um cruzeiro, embora seja um desejo antigo, mas fiquei com um pé atrás depois de ouvir sobre infecções alimentares e, mais recentemente, surtos de covid, etc. Acho que, tirando esses problemas, é uma viagem muito boa. Não ter que fazer e desfazer malas o tempo todo, além de ter uma estrutura que possibilite fazer mil coisas, é o melhor dos mundos.


O único meio de transporte que tenho fobia, ou melhor, claustrofobia, é o elevador. Sempre tive medo de entrar naquela cabine, desde quando, ainda criancinha, me mudei para um prédio, numa época quando ainda não era comum ter geradores residenciais.   Não, não foi na pré-história, se é o que está pensando. A verdade é que a sina de ficar presa em elevadores me acompanha desde então.


Na primeira vez , eu tinha sete anos de idade e vinha com minha irmã mais nova do colégio, no fim da tarde. Nós morávamos no terceiro andar, uma viagem até rápida, mas  mal entramos, faltou energia. Ficou tudo escuro e eu me desesperei. Ela, muito madura, segurou a minha mão e disse que não me preocupasse. Minha irmã sempre foi uma pessoa corajosa; nunca derramou uma lágrima por nervosismo, nem quando precisava  tomar injeção. Já eu, ao contrário, nasci com todos os medos! Dizem que os filhos mais velhos são um poço de insegurança, por causa da inexperiência dos pais, que depois do “estágio” do primeiro filho, tiram de letra os próximos. O primogênito que lute contra seus fantasmas, no meu caso, muitos!


E como exercício contra a timidez e medos bobos, meus pais me colocaram desde cedo para fazer um curso de música. Quer coisa mais aterrorizante do que se apresentar para uma plateia? Minha professora, percebendo que eu gostava de saber sobre a história por trás da música, aos poucos foi quebrando meu nervosismo, me incentivando a, antes da apresentação, comentar um pouco sobre a autoria da música a ser apresentada. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida! Eu discorria sobre tudo, desde a vida do músico, em um grau de intimidade como se fôssemos os melhores amigos, até sobre questões técnicas da partitura. Isso quebrava um pouco minha timidez e dali seguia com menos medo de errar.


Trouxe esse ensinamento para minha vida. No colégio, eu sempre pedia para apresentar trabalhos, mesmo que na véspera não conseguisse dormir e chorasse de nervoso. Sou canceriana e “chorar” é quase como respirar; os sentimentos vêm antes de mim, para o bem e para o mal. E foi assim que me tornei uma pessoa comunicativa, embora tímida. Só eu sei o deserto que tive que atravessar para me tornar quem sou hoje.


Fiz intercâmbio em uma época que não era  comum. Ali eu realmente quebrei barreiras! Ter que conviver com pessoas de uma realidade totalmente adversa da minha foi, em princípio, um susto, mas também uma libertação. Eu não só tive que superar medos, como também superá-los noutra língua. Minha família estrangeira era maravilhosa, conversava bastante comigo e eu, envergonhada e sem saber o que falar, comecei a inventar histórias. O café da manhã era a minha hora da mentira;  eles prestavam atenção a cada detalhe do que eu contava. Lembro que meu “pai americano” sempre perguntava se a história era em cores ( inventei uma vez de dizer que sonhava em preto e branco) e se em inglês. No dia que respondi “yes” para as duas perguntas, ele me deu parabéns e disse que eu estava totalmente adaptada à minha nova vida. Nova vida? Quer dizer que posso ter mais de uma? Que maravilha!


Como já disse antes, sou canceriana. Levo esse signo muito a sério, até porque explica grande parte das minhas ações. Esse ano, pelos astros, vai ser um grande ano para mim! Dizem que Júpiter me atrapalhou nos últimos onze anos e finalmente mercúrio, que aqui comparo com minha professora de música, vem com tudo para abrir meus caminhos. E pelo que li, vai ser uma guinada daquelas! Novas oportunidades, desafios e, sobretudo (olha minha palavrinha preferida), uma nova vida! Há a previsão de eu viajar, para outro país! Um novo intercâmbio se abre para mim, só que dessa vez não ficarei com uma família. Depois do Airbnb, a possibilidade de me hospedar em um lugar onde possa “participar” diretamente da vida de outra pessoa é muito instigante. É quase como um relacionamento, onde inicialmente trocamos algumas informações, depois conversamos um pouco sobre nossos interesses e finalizamos quando ocupamos o espaço daquela pessoa que aluga não só seu imóvel, como parte da sua vida. É o que chamo de  relacionamento aberto! Compartilhar uma casa, manusear objetos de outra pessoa, folhear seus livros, ver fotos de família na estante… O meu primeiro relacionamento aberto foi em um outono distante, quando aluguei um quarto numa casa linda, cercada de pinheiros e esquilos, o famoso “bed and breakfest”. Depois que selecionei o local, que entrei em contato com o proprietário e quando já estávamos quase amigos, ele precisou viajar na véspera da minha chegada. Para minha surpresa, ele deixou um bilhete de boas vindas, em cima do balcão da cozinha, junto com vários cupcakes que devo ter mencionado que gostava nas nossas conversas. A geladeira estava abastecida, e na porta, pregado com um imã, nome de vários mercadinhos e dicas de locais interessantes para conhecer.


E foi assim que vivi outra vida, de tantas que já tive oportunidade de viver. Raramente me hospedo em hotéis, gosto de conhecer novas pessoas e formas de viver. De comum, todos “Airbnbistas” que conheci, têm a cultura do desapego, de uma vida minimalista, além de uma lista de regras para boa convivência, que poderiam perfeitamente existir em todos os lugares, inclusive nas nossas próprias famílias. Sou muito a favor do que é dito, do não deixar  subentendido. Todas essas pessoas com quem pude partilhar um pouco, tornaram-se amigos, principalmente com a ajuda das redes sociais.


Alguém disse, certa vez, que não é a distância que separa as pessoas, mas o “tanto faz”… Tenho amigos espalhados pelos quatro cantos do mundo, de várias vidas que já vivi, para quem nunca fui “tanto faz” e com quem divido minha “camuflada” timidez. À eles, dedico meu patrimônio emocional.

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