Arquivos ANA MADALENA - Blog do Saber https://blogdosaber.com.br/tag/ana-madalena/ Cultura e Conhecimento Wed, 30 Nov 2022 21:09:26 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.4.3 Desacontecimentos https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/desacontecimentos/ https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/desacontecimentos/#respond Wed, 30 Nov 2022 20:55:43 +0000 http://blogdosaber.com.br/?p=92 Ler mais]]> É com muita satisfação que publicamos mais um dos criativos e inteligentes contos da nossa querida Ana Madalena, que resolveu nos dar uma canja e me enviou essa pérola com o título de “Desacontecimentos”, aqui na nossa coluna crônicas desta quarta-feira. Uma história mirabolante e futurista, que se passa algumas décadas adiante, que ela relata com muita imaginação. Então aproveite a oportunidade e se delicie com essa crônica maravilhosa.

Estava triste e por isso resolveu escrever; dessa forma teria tempo para refletir sobre o que deixar registrado. Cada palavra seria medida e pesada, inventaria até algumas para explicar suas emoções. Depois do apagão, que dizimou uma boa parte do mundo, tudo que restou ficara definitivo, para sempre. O futuro já era realidade, mas ela continuava com os mesmos dilemas de antes.


Lembrava com saudade do ano 2025, o único que pôde escolher para salvar na memória, sem dúvidas, o melhor da sua vida. Finalmente conseguira engravidar, depois de muitas tentativas. Seu sonho se concretizara com as gêmeas, Sara e Sofia. Infelizmente, seu companheiro não suportou cuidar das crianças, nem lidar com seu complicado puerpério, a nova rotina… Ele sumiu, para nunca mais. Se ainda estivesse vivo, deveria estar gostando desse novo modelo de vida, de pessoas com aspecto encerado e sem sentimentos. Um bando de máquinas!


De lá para cá, burlava as regras, escrevendo tudo o que achava importante. Tinha que ter memórias, mas sabia o risco que corria. Sentia falta do velho mundo, das cores, principalmente o amarelo. O mundo cinza era profundamente triste, até o sol sumira do céu, ou o que restou dele, agora mais distante ainda. Não suportava viver numa pré-história high-tech, com pessoas robóticas e para lá de estranhas. Gostaria de ter sumido, como tantos outros.  Não lhe agradava a ideia da não finitude da vida; o “não morrer” era um tédio, mas uma vez ali tinha que ser renovada a cada década. A aplicação do chip, além de dolorosa, era obrigatória. Não sabia se tivera sorte ou azar quando o primeiro, que fora implantado, na base da sua nuca, não funcionou. Por algum motivo, a instalação não foi concluída com sucesso, motivo pelo qual tinha lampejos de outra realidade, outra vida. Vivia unicamente em função de descobrir alguém que também tivesse essa falha, mas não era fácil. Quem em sã consciência se entregaria?


Sua rotina incluía uma busca incessante por sua família, mas tinha que ser cautelosa.  Como os sentimentos e laços familiares tinham sido extintos, as famílias foram separadas de forma aleatória, para garantir que a “experiência” não tivesse falhas. Ser eterno e viver em um mundo sem pragas era o objetivo dos cientistas no poder. Ela sonhava com o fim, porque o fim era a solução; detestava o meio, mas ela estava presa nele para sempre. E o para sempre, era muito assustador. Não suportava viver numa eterna ficção-científica.


Uma ideia fixa tomou conta do seu pensamento.  Se daria mais uns meses para procurar sua família e, depois, se não encontrasse ninguém… Teria que ser cuidadosa, burlar sentimentos, sonhos e o que mais eles pudessem farejar. Ouviu dizer que “eles” sabiam cada emoção, pois o portador exalava um odor apenas detectado pelo grande mestre. Tinha que se manter indiferente para não sentirem seu cheiro de tensão, medo e ansiedade, embora não soubesse que punição maior poderia ultrapassar o castigo de não morrer. As paredes de espelhos pareciam refletir seu olhar de angústia. Precisava urgentemente tirar aquele olhar do seu rosto; qualquer um perceberia que ela não estava bem.


Olhou a rua pela janela, daquilo que chamavam de bloco; o seu, de quatro pavimentos, parecia uma mínima parte de um lego gigantesco. Vivia a dor do cárcere. Não fazia ideia de como era nos andares mais altos. Não era permitida interação com outros subgrupos. Se sentia no fundo do poço, ou melhor, uns cinco metros abaixo dele. Todo dia rezava para ter de volta sua vida de antes; sofria só em pensar que reclamara tanto por coisas tão pequenas, como as calçadas esburacadas que quase a faziam cair quando enganchava seus saltos, ou as rodinhas do carrinho das gêmeas. Queria seu passado, até as coisas que detestava…  A dor de não ver crianças brincando ao sol, casais enamorados, cachorros abanando os rabos, a lua no céu, o vai e vem das ondas do mar, pessoas sorrindo, era um peso muito alto para carregar. Em pensar que todos escolheram o tempo, ou melhor, a falta dele, para ser a principal meta de trabalho do século. E depois, de várias tentativas, finalmente descobriram como fazê-lo parar. O feitiço virou contra o feiticeiro.

Sentiu algo salgado na boca. Depois de uns segundos se deu conta que era uma lágrima. Abriu os olhos assustada! A luz que invadia seu quarto, também entrava nos seus olhos. Lentamente olhou ao redor, como que não acreditando no que via.  Suas filhas dormiam nos bercinhos ao lado da sua cama. Adorava ouvi-las sugando as chupetas; sabia que quando faziam tão fortemente, era porque estava perto de acordarem para mamar. Sentou na beira da cama, tentando colocar seus pensamentos em ordem. Olhou o calendário; precisava saber se voltara para 2025.  De repente, viu as flores murchas no vaso em cima da mesinha de cabeceira. Abriu um enorme sorriso; finalmente tudo voltara a ser como antes!

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O novo jardim https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/o-novo-jardim/ https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/o-novo-jardim/#respond Wed, 30 Nov 2022 20:43:52 +0000 http://blogdosaber.com.br/?p=89 Ler mais]]> Nesta quinta-feira, excepcionalmente teremos, aqui na coluna crôncas, mais uma canja da nossa colaboradora ana madalena, cujo título é “o novo jardim”. O tema gira em torno de como ficou o nosso cotidiano depois da pandemia de covid-19, convivendo com as constantes perdas, físicas, materiais e emocionais. Portanto convido você para ler a bem contada crômica sobre perdas e ganhos em tempos de covid-19.

Foi como um efeito dominó. Fomos caindo um por um, o que de certa forma não foi tão ruim. Pior seria se caíssemos todos de uma só vez! Quem cuidaria de quem? Melhor assim, com pausa para se acostumar, tanto com os sintomas, quanto com os olhares desconfiados; será que aquele inocente espirro era apenas um espirro inocente?

O primeiro a ficar doente é sempre o que anuncia o porvir e vira uma espécie de espelho para os outros. Como num ballet, faz iniciar uma coreografia de atração e repulsão: penalizados com o doente, os “saudáveis” têm a empatia de querer cuidar mas,  por outro lado, denunciam o medo, legitimo, de não querer se infectar! Isso, claro, quando o inimigo não tem o nome e sobrenome de Covid-19. A impressão que tenho é que o mundo está todo infectado! E assim, depois de dois anos nos escondendo atrás de máscaras e face shields, o vírus entrou na nossa casa, só não sei se pela porta, janela, ou se pelos dois. Meu tio disse categoricamente que o vírus tinha entrado pelo elevador. Do jeito que falava, com riqueza de detalhes, parecia que podia enxergá-lo a olho nu!

A primeira pessoa que tive conhecimento de ter sido infectada pelo Covid foi minha vizinha de rua; adoeceu no começo da pandemia, quando ainda não havia vacina e o medo era uma constante. Me preocupei, pois soube pelos porteiros que ela vivia sozinha; os filhos, já casados, moravam noutra cidade e o marido há muito havia “sumido”, para nunca mais voltar. Do meu apartamento, podia ver sua casa, a única de muro baixo, com portas de vidro e cortinas sempre abertas, o que me permitia ver parte da sua rotina. Todas as manhãs ela acordava bem cedo e se dirigia ao jardim; acho que conversava com suas plantas, principalmente as orquídeas, que ficavam ao lado do conjunto de jardim, uma mesa e quatro cadeiras de ferro, pintadas de branco, com almofadinhas azuis. Ali, ela tomava seu cafezinho e pegava sol, sua vitamina diária. Aos poucos, ela se tornou parte da minha vida, pois era a primeira visão que eu tinha pela manhã.  E, por isso mesmo, estranhei quando passados três dias, não a vi.

Mesmo apreensiva, resolvi me dirigir à sua casa. Abri o portãozinho e percebi que as plantas estavam sofrendo sem água e sem as conversas diárias. Descobri, no canto do muro, uma mangueira e comecei a aguar o jardim. As roseiras, murchas, logo se recuperaram!. A cada dois dias, eu ia cedinho para aquela casa e permanecia meia hora, absorta na tarefa que eu nem sabia que me fazia tão bem!

Até que um dia ela voltou, depois de quase um mês internada. Suas sobrancelhas arquearam quando me viram, no início da manhã, conversando com suas “amigas”. Disse-me que estava feliz,  não imaginava que alguém fosse cuidar de seus tesouros. E a partir daquele dia, combinei de, vez por outra, visitá-la.

-Venha sempre que puder! Vamos tomar um café juntas; eu gosto de conversar, trocar ideias! Voce sabe, quando se tem uma ideia, no mínimo se sai com duas. Pense em alguma coisa e vamos aprender juntas!

No início da semana passada pensei estar gripada, depois a garganta  começou a fechar e uma moleza foi tomando conta de mim.  Foram três dias péssimos, sem conseguir comer, beber, sequer falar. Só me restou ler, olhar minha amiga pela janela e escrever. Confesso que essa foi a primeira vez que pensei, de fato, na finitude da minha vida e como isso afetaria  minha família e amigos. No balanço geral, percebi que eles não estão preparados para me perder. Nem eu a eles.  Esse momento mais introspectivo credito às incertezas que vivemos. Desisti de ouvir tudo que me deixasse triste e resolvi fazer uma imersão nas séries. Coincidentemente, ou não, escolhi uma que trata do luto; apesar do tema, confesso que me rendeu boas risadas. Virei a noite maratonando “After life”, uma das melhores coisas que vi recentemente.

E, para minhas noites, adotei uma prática que Aristóteles fazia uso para permanecer acordado. Não, não eram energéticos, nem café! Vi a foto de uma escultura onde ele está sentado, lendo um livro, com uma bola na mão. Uma bola pequena, como as de tênis, mas com peso, com massa, como dizem os físicos. O objetivo era, quando estivesse lendo e, caso pegasse no sono, a bola cairia, fazendo barulho. Eu comprei umas bolas de gude e presenteei à minha vizinha, que por muitas vezes presenciei  dormindo profundamente, no seu horário de leitura. Na hora que falei  desse “truque”, me perguntou  o porquê de não usarmos essa bolinha para diversas situações da vida, como quando estivéssemos com alguém…. Ficaríamos concentrados somente naquela pessoa, sem nos preocuparmos com o entorno. A bola acordaria o coração!

Aquela observação me fez pensar… Infelizmente as pessoas não se concentram mais em nada, nem nelas próprias. Uma pena, até porque a atenção é a forma mais pura de generosidade. Hoje, as redes sociais vendem atenção e nós, bobos que somos, compramos essa atenção o tempo todo.

Tive um sonho recorrente nesse período de Covid; eu dirigia por uma estrada a beira mar, com os vidros abertos. Um dos meus braços e meu rosto ficavam para fora da janela, como se eu nunca tivesse sentido uma brisa na vida. Já tentei interpretá-lo, mas talvez não signifique nada, a não ser meu desejo que o calor, insuportável, dê lugar para temperaturas mais amenas. Por alguma razão, lembrei de olhar as plantinhas da minha amiga. Levei um susto quando vi as cortinas fechadas e nenhum jarro no jardim. Como que adivinhando meus pensamentos, o porteiro interfonou; disse que tinha uma notícia triste para dar… A minha amiga tinha partido dormindo, uma morte tranquila. E, sem ter noção da minha dor, começou a falar sem parar:

– Ela estava com problemas no coração e a filha veio passar uns dias com ela. Já levaram tudo da casa, acho que venderão para uma construtora. A rua agora vai ter prédio que nem presta! Era tão tranquilo quando vim trabalhar aqui… Agora é um entra e sai de carro nessa rua, uma zoada… Ah, deixaram uma encomenda para a senhora, foi a filha dessa senhorinha que faleceu. São umas plantas, estão no jardim daqui do  prédio. O rapaz da limpeza disse que na sua casa estão todos com Covid e ele tem medo até de recolher o lixo daí … Desculpe, mas foi o que ele disse…

O porteiro ainda falou mais alguma coisa, mas não escutei. Ele é desses que adora uma conversa, acho que por passar o dia numa guarita, isolado, confinado nos seus pensamentos, interrompidos aqui e ali pelo interfone.

Nós estamos saindo do covid. Agora o efeito dominó é ao contrario; todo dia um de nós fica cada vez melhor. Nesse período, refletimos muito sobre a vida e, realisticamente, concluímos que teremos de conviver por muitos anos com os vírus. Vamos redobrar nossos cuidados, tanto físico, quanto emocionalmente. E carregaremos bolinhas imaginárias para aproveitar cada momento das nossas vidas. Não vamos economizar na atenção e no amor!

Dedico essa crônica a uma grande amiga que partiu essa semana e, devido ao meu estado de saúde, não pude dar o último adeus. Ela, que adorava plantas e pessoas, deve agora estar  cuidando de um novo jardim!

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Recomeços https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/recomecos/ https://blogdosaber.com.br/2022/11/30/recomecos/#respond Wed, 30 Nov 2022 20:08:35 +0000 http://blogdosaber.com.br/?p=75 Ler mais]]> Quarta-feira é dia de crônica, aqui no blog do saber. A nossa mais nova coluna recheadas de boas e saudáveis crônicas da melhor qualidade. A nossa estreia, na semana passada foi com a bela história de paz e guerra, uma trégua no natal, escrita por Ana Madalena, que dá agora uma nova contribuição com a crônica “recomeços”. Então, vamos lá, faça uma boa leitura e tire suas conclusões!

Foi no início de julho de 2019, alguns dias antes do meu aniversário. Estava muito feliz e tinha planejado chegar bem cedo, mas chovia bastante e faltou energia o dia todo. Escolhi o meu apartamento pela vista, que é magnífica, mas o prédio, bem antigo, não tem gerador. Meus amigos disseram que foi uma compra por impulso, mas quando vieram para o “open house” entenderam o porquê da escolha. Meu apartamento de 35,7 metros quadrados era tudo que eu precisava para ser feliz.  E acredite, cada centímetro fez uma grande diferença no decorrer desse ano…

Sou o tipo básica, mas gosto de conforto e de beleza nas mínimas coisas. Decorei meu apartamento do jeito que sonhei. Infelizmente, pouco depois da minha mudança, a empresa onde trabalho resolveu me “promover” e eu passei a fazer viagens a cada quinze dias. O meu sonhado “lar doce lar” virou apenas um lugar para dormir. Até que…

Recordo quando meu supervisor ligou, já tarde da noite, cancelando minha viagem de março. Disse que seria por uns dias e que assim que tudo normalizasse, eu retomaria a agenda de trabalho. Desliguei eufórica, até abri um vinho para comemorar! Finalmente eu teria tempo para curtir meu cantinho!

Liguei a TV para saber da tal pandemia;  confesso que me assustei com o que ouvi. Telefonei para meus pais e irmãos e pedi para que não saissem de casa. Corri ao supermercado e fiquei impactada com as filas intermináveis; parecia que estávamos numa guerra. E era, só que invisível.

Preparei um roteiro para meus próximos dias. Não poderia ficar sem foco, sou movida à rotina. Tentei me exercitar, ter horário de leitura, de trabalho, fazer cursos online e outras tantas coisas que sempre reclamei não fazer por falta de tempo. Mas o tempo foi passando e a quarentena se prolongando… Veio a inquietação. De tudo. O mais estressante foi não saber quando isso acabaria.

Chegou julho, a Terra deu mais uma volta ao redor do sol e eu fiz aniversário sozinha. Não, minto! Comprei um hamster chinês, apesar da minha desconfiança de tudo que vem de lá. Nossas noites foram reservadas para os exercícios: eu na esteira e ele na rodinha. Tomei a resolução de cuidar de um ser vivo depois que vi todas as minhas plantinhas morrerem por descuido. Aquele planejamento de uma rotina saudável ficou no papel por meses, quando vestia pijamas e arrastava chinelos.

Agora falta pouco para esse ano ser mais um calendário jogado fora. Apesar de todos os percalços e das milhares de pessoas que perderam a vida, confesso que depois que peguei o ritmo, só tenho coisas positivas para levar comigo. Descobri que sou ótima companhia e que, apesar do caos do isolamento, fiz descobertas incríveis e aprendi novas habilidades. Também comprei uma estante de exatos 70 centímetros e já preenchi duas prateleiras dos livros que li, de longe o melhor programa cultural e à prova de aglomeração. Também escrevi um diário; quem sabe um dia eu venha a ter filhos e eles possam entender como alguém vive em meio a uma pandemia.

O ano de 2020 realmente ficará marcado na vida de todos nós. Aos amigos e familiares eu cito Oswaldo Montenegro, na música Sem mandamentos,  “hoje eu vou pedir desculpas pelo que eu não disse e até desculpo o que você falou”. Esse é o meu hino de esperança; deixemos rusgas e outros sentimentos incômodos para trás.  Vamos agradecer! Nós sobrevivemos!

Ana Madalena

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